POR QUE ESCREVER – CAMILO GOMIDE

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Camilo Gomide

Escrevo essa coluna sob a pressão do carnaval. São 10 horas da manhã do dia cinco de março, terça-feira gorda, véspera da quarta-feira de cinzas de um ano que parece já ter se desfeito em pó em primeiro de janeiro. Estou em Recife, faz calor, e parece só existir o carnaval aqui, em Olinda, em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em todo lugar ao alcance da minha vista. Eu odeio o carnaval mas evito expressar essa opinião porque sei o quão antipático e reacionário isso soa. Mas, fazer o quê, odeio essa obrigação de ser feliz na avenida. Folião. Mais ainda: passo mal no aperto da multidão.

Este ano o carnaval me pegou ainda mais desprevenido. Tinha me organizado pra escrever esta coluna entre os dias quatro e seis de março, de segunda a quarta-feira, três dias em que eu estaria mais tranquilo de trabalho, havia me organizado pra isso. Tempo suficiente, tempo justo. Só me dei conta de que havia um carnaval no meio do caminho na semana anterior ao feriado. Por uma dessas ironias da vida, minha noiva é pernambucana. Não gosto de generalizações, mas desafio qualquer um aqui a encontrar um pernambucano que não seja apaixonado pelo carnaval. Tínhamos comprado passagens pra passar o feriado em Recife com meses de antecedência. Enfim, vacilo meu. Viemos.

Nosso combinado foi pegar dois blocos em Olinda no sábado, ir à praia no domingo, pra descansar, e voltar no dia seguinte pra tentar pegar outro bloco ainda na segunda. Na terça-feira, no fim do dia, iríamos pro bloquinho que não conseguimos acompanhar no sábado (o favorito da Marília) e na quarta-feira descansaríamos até a hora do voo de volta, tarde da noite. Como eu tinha de terminar um trabalho que surgiu na semana pré-carnaval e escrever a coluna, negociamos um pouco a programação, mas nenhum de nós saiu plenamente satisfeito com o acordo.

Para piorar, o dia de sábado em Olinda foi horrível pra mim. Chegamos no pior horário possível, pegamos congestionamentos de carros e (o pior de todos) de gente. Para chegar até a casa que um casal amigo alugara tivemos de atravessar uma massa densa, muito compacta, e desgovernada de gente. Foram trinta minutos de aperto, calor, falta de ar, em que tomei cotoveladas, empurrões, puxões e fui jogado de um lado pro outro sem nenhum controle da situação. Não havia o mínimo espaço pra existir naquele bolo de rolo humano em trânsito pelas vielas estreitas de Olinda. Em uma determinada esquina, um carro surgiu (sabe-se lá como) no meio da rua. Houve princípio de pânico, de estouro de boiada. Achei que morreria pisoteado.

Conseguimos escapar para a outra rua e, para nossa sorte, descobrimos que já estávamos a poucos metros da casa. Quando, finalmente, chegamos minhas pernas e mãos tremiam, meu coração estava acelerado, meu estômago doía e eu vibrava de raiva. Prometi a mim mesmo que jamais voltaria aquele lugar. Ficamos na casa mesmo e só saímos pra dar uma volta quando a multidão murchou e dali fomos embora.

No domingo fomos à praia, mesmo com chuva, onde ficamos hospedados com uma família de amigos da Marília. Fomos muito bem recebidos, mas, como foi um bate-volta, e eu estava preocupado com as coisas por fazer, não consegui descansar. Voltamos na segunda-feira só no meio da tarde. Consegui terminar o trabalho por volta das 20h. Comemos, assistimos um filme e nos deitamos. Antes de dormir, comentei com Marília que não sabia muito bem o que escrever na coluna. Ela me sugeriu que falasse da minha experiência no carnaval de Olinda. Neguei e disse que se fizesse isso todo mundo ia me achar um chato. “Pega mal falar mal de carnaval…”, ponderei. Ela disse que era só eu não fazer juízo moral que estava tudo bem. “Mas minha questão não é moral”, eu disse, “adoro a putaria, a zoeira, as músicas, a festa em si, só não consigo lidar com aquele aperto horrível, concentro todas minhas forças para não entrar em pânico e surtar ali no meio… Além disso, não quero falar de mim de novo”.

Pensei mais um pouco enquanto esperava o sono e percebi que talvez fosse mesmo uma boa ideia falar sobre minha experiência com o carnaval, já que o assunto se relacionava de certa forma com o tema escolhido anteriormente, a saber, “por que escrever”.

Pouco tempo atrás, numa conversa sobre livros sobre escrita com os Escritorxs de Quinta, fiz uma lista com os que me pareceram os mais interessantes. Saiu na frente o Pequeno manual de procedimentos, de César Aira, escritor argentino que já estava no meu radar mas nunca tinha lido. O livro é uma coletânea de textos (alguns meio ensaísticos, outros mais pra crônica, um conto ou outro…) que refletem, essencialmente, sobre a arte, em especial a literatura. Fui logo para o último texto, cujo título Por que escrevi me remeteu a uma pergunta que me ronda há anos sem nunca receber a merecida atenção e agora parecia mais urgente.

  Existe, a meu ver, Aira concordaria comigo, uma pergunta anterior a esta: por que literatura? Todo escritor é, antes de tudo, um leitor. Muitos, inclusive, como o próprio Aira, o chileno Roberto Bolaño, entre muitos outros (arriscaria até a dizer todos, mas não sou desses), sentem-se mais satisfeitos como leitores do que como escritores. No meu caso não é diferente. Muito antes de arriscar os primeiros escritos, que foram devidamente mantidos em segredo e/ou destruídos para o bem geral das pessoas (em especial para o meu), fui um leitor entusiasmado, desde a infância. No princípio, me encantavam as fantasias, principalmente as mitologias. Com o tempo, fui me interessando pelo tipo oposto de história até cair no extremo de só me interessar por histórias reais/realistas.

Hoje, felizmente, sinto que estou restabelecendo um certo equilíbrio nessa relação, tanto por ter entendido as limitações dos realismos, quanto por ter percebido que o que realmente me interessa na literatura é seu poder desmascarador. Boa literatura para mim é aquela que, de alguma forma, desmascara o mundo. Para isso não é preciso ser realista, aliás, em muitos casos esse desvelamento só é possível fora dos procedimentos do realismo. É o que acontece nos livros de Kurt Vonnegut. Em Slaughterhouse-Five, por exemplo, a única forma possível de contar a experiência do próprio autor como soldado durante a Segunda Guerra Mundial é por meio de uma narrativa carregada de elementos de ficção científica. Mas o texto de Vonnegut só parece ficção científica. Em Slaughterhouse-Five essa linguagem existe para denunciar o absurdo e a irrealidade da experiência da guerra. Parte de um compromisso ético do narrador firmado com uma amiga que reclama do fato de todo livro de guerra ser fundamentado na figura de heróis, sendo que, na verdade, todos aqueles homens não passavam de crianças.

Um pequeno parêntesis, porque Vonnegut me lembra Mutarelli: ouvi do escritor de O cheiro do ralo certa vez que escrever, para ele, era a forma mais complexa de pensar. Quando escreve, Mutarelli está quase sempre tentando desenvolver de forma mais profunda ideias que, normalmente, ele ainda não foi capaz de formular. Na mesma ocasião, ele comentou que, ao contrário do que pode ter acontecido no passado, ele já não escreve mais para se vingar. Me identifico muito com essas duas motivações, literatura é a forma mais elaborada de pensamento e é, também, vingança.

Voltando a Aira, há outro sentido comum na escrita para muitos escritores, o de documentação, um certo desejo de resgate e de preservação de determinados mundos. Aira diz ter escrito livros que poderiam servir como guias para a reconstrução da Argentina caso o país viesse a desaparecer. Não uma Argentina nova, melhor, diferente, mas exatamente a mesma.

Existe por trás dessa intenção uma concepção particular de escrita, trazida por Barthes, que identifica quem escreve em duas categorias: o écrivain e o écrivant, o escritor e o escrevente. O primeiro, está muito mais ligado ao trabalho com a linguagem, com “o gosto pela textura da linguagem, o jogo dos timbres, matizes e rugosidades do discurso poético[1]”; o segundo, está mais preocupado com uma escrita mais documental, fundamentada na experiência do autor, mais voltada, enfim, ao dito mundo real.  É comum a esse segundo grupo (com o qual me identifico mais) o desejo de “contar tudo”, de encontrar a origem dos fatos, de buscar uma prosa cristalina. Uma busca impossível, como nos lembra Aira, já que cada fato se desdobra em uma infinidade de outros fatos. Ser inatingível, no entanto, não é empecilho pra nada, muito pelo contrário, é a própria fome (o que é, afinal, a literatura senão uma utopia?).

Há, ainda, uma última motivação que encontro na escrita e que me leva a enfrentar mais uma vez as ladeiras abarrotadas de Olinda: as possibilidades do encontro com o outro e do abandono de si mesmo. Um certo sentido de escrever para lembrar e esquecer ao mesmo tempo, como a narradora da tetralogia napolitana de Ferrante, que escreve como recusa ao desaparecimento da amiga. Um sentido que parte da existência individual e rompe com a pequenez do eu rumo a uma experiência coletiva. É difícil. É fugaz. Mas é possível. Já fui feliz no carnaval.

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Camilo Gomide 
é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e escritor.

[1] AIRA, César. Por que escrevi. In: Pequeno manual de procedimentos. Trad de Eduard Marquardt. Curitiba: Arte e Letra, 2007, p. 171.

:: Ilustração