CORPO E LITERATURA – GRAZIELA BRUM

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Graziela Brum

Em recente mesa redonda, dentro do evento que comemorou os três anos do projeto literário Senhoras Obscenas, mediei um bate-papo sobre o tema Corpo e Literatura. Na mesa, as escritoras Márcia Barbieri, Anita Deak e Renata de Castro trouxeram à tona relevantes questionamentos sobre a construção do corpo em Literatura. Uma conversa com quase duas horas de duração, encerrada para cumprir a programação da noite, mas que ainda poderia se estender por pelo menos mais algumas horas de debate pela complexidade e desdobramento do assunto. O texto que segue apresenta as reflexões e os estudos que fiz com a intenção de me preparar para o evento. Um ensaio que me orientou, mas que para nada serviria se não fossem as excelentes observações das escritoras que participaram da mesa.

 

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Diz o dicionário que corpo é o conjunto de inúmeras partes que compõem um animal, após sua morte, o chamam de cadáver. Também é a estrutura física de um organismo vivo, englobando suas funções fisiológicas.

Porém, ainda antes de pensar em corpo literário, torna-se necessário refletir sobre esta corporeidade a partir da influência filosófica. Platão (428-347 a.C.)  fala do mundo das ideias, do qual a alma se originou e se encarcerou num corpo que é o mundo real. Segundo ele, o corpo se apresenta como uma dimensão inferior, limitado, contraposto à alma (perfeita, eterna e imutável). Fato que lança pressuposto para a teologia cristã. Diante da afirmação de Platão, as atividades daquele século, relacionadas ao intelecto, eram consideradas nobres, reservadas à aristocracia, fomentando o chamado “ócio prestigioso” e relegando às classes inferiores os trabalhos braçais.

Já para Aristóteles, o homem é um misto, um pensamento intimamente unido a um corpo. Em “A imaginação”, Jean-Paul Sartre afirma que não há pensamento que não esteja manchado pelo corporal. A ideia cartesiana de um pensamento puro, ou seja, de uma atividade da alma que se exerceria sem o concurso do corpo, é uma heresia orgulhosa, mais do que isto, Aristóteles conclui que não se pode exercer atividade intelectual sem o amparo da imaginação. Assim como Sartre defende o associacionismo, ou seja, o corpo, a fraqueza do homem; e o pensamento, a sua dignidade. Mas nunca há dignidade sem fraqueza, nunca há pensamento sem imagem.

Pode-se então afirmar que um corpo é o conjunto da mente com seu físico? Ainda, há alma neste corpo? É possível transcender os limites da mente e da corporeidade? Que corpo é representado pela barata em Paixão Segundo GH, de Clarice Lispector? Também, no livro “A metamorfose”, de Kafka, que corpo podemos definir ao pensar no inseto gigante apresentado no conflito inicial da novela? Um estilo narrativo que por mais absurdo que se apresente, não foge à verossimilhança.

Na modernidade, a percepção do corpo subjetivo possui como gênese duas vertentes que perpassam a concepção de ser humano: a abordagem idealista e a tendência materialista. Aqui se torna possível transcorrer por inúmeras vertentes de percepções e pensamentos para definir o que se pode então dizer corpo. Um corpo visto como produto mecanizado e mercadológico, de perda de identidade diante das possibilidades tecnológicas e da alienação humana. Um corpo cadáver servindo para o deleite de uma satisfação pessoal pautada na visão reproduzível e engessada da beleza.

Aliás, a beleza como representação da verdade de um corpo, buscada por poetas, pintores, escultores, artistas. “A beleza salvará o mundo”, escreve o escritor russo Fiódor Dostoiévski no livro “O idiota”. A proporção áurea, ponto de partida para Leonardo Da Vinci desenvolver o homem Vitruviano, é hoje ainda uma questão em arte, em Literatura? O que poderíamos dizer do quadro de Les Demoiselles d’Avignon, do pintor espanhol Pablo Picasso. Corpos de mulheres deformados, e ainda assim uma das pinturas mais conhecidas do artista e venerada pela modernidade.

O mundo não concebe mais conceitos, os limites se desfazem nas contrariedades humanas e se traduzem na concepção de arte. Pornografia, erotismo, castidade não podem mais se definir em conceitos fechados diante da pluralidade humana em que tudo parte do homem, ou tudo parte do outro, ou ainda as duas coisas juntas.  Não há para isso respostas nem no feminismo, nem na teoria queer, que fala sobre o gênero e afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de uma construção e que, portanto, não existem papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais.

Seja como for, na Literatura, quando se fala de corpo, fala-se também da construção do personagem, englobando não somente aspectos físicos, mas também psicológicos, emocionais e sociais. Construir o corpo literário seria, então, a construção da própria obra literária? Diante de tantas percepções para construir tal corporeidade literária, há de se pensar na liberdade de expressão do escritor, mas que liberdade é esta se fatos e acontecimentos nos atravessam a história o tempo inteiro? Seria possível escrever insensível aos crescentes ataques de misoginia? Ou escrever sobre um corpo apolítico, num mundo pautado pelo retrocesso dos direitos humanos? Há aqui muitas perguntas e nenhuma resposta engessada e definitiva, apenas um espaço para debater e pensar as formas de construção em Literatura, assunto sempre de interesse para quem escreve. De qualquer forma, o escritor sempre faz suas escolhas diante daquilo que o comove. Escrever é um ato de liberdade.

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Graziela Brum é de Arroio Grande/RS. Escritora. Idealizou o projeto literário Senhoras Obscenas, o qual coordena junto com a historiadora Adrianá Caló. Participa do coletivo Escritorxs de Quinta, venceu o concurso ProAc categoria romance com o texto “Fumaça”. Publicou com Editor Lumme “Vejo Girassóis em você”. Atualmente escreve o romance Jenipará.