COMO TER IDEIAS? – LILIANE PRATA

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Liliane Prata

Há muitos anos, caiu em minhas mãos (ok, comprei) um livro chamado “Pequeno guia para pessoas inteligentes que não estão dando certo”. Béatrice Millêtre, a psicóloga autora da obra, baseia-se na pesquisa do neurobiologista Roger W. Sperry, que recebeu o Nobel por descobrir dois modos de funcionamento cerebral: um analítico, predominante em 70% das pessoas, e um intuitivo. Para essa minoria mais, poderíamos dizer, porra louca, Béatrice sugere algumas ferramentas na hora de trabalhar num projeto qualquer. Uma delas: precisa ter uma ideia? Em vez de se abastecer com as referências e informações necessárias para o projeto e em seguida se sentar em frente à tela em branco, como alguém mais analítico faria, abasteça-se com as informações e vá caminhar, tomar banho, ir ao cinema, enfim, vá fazer algo que não tenha a ver com sua tarefa. Mais do que isso: esqueça a tarefa. Então, quando menos esperar, sua ideia brotará. É como naquela frase atribuída a Einstein: “Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio – e eis que a verdade me é revelada”. Nem precisa ser a verdade, Einstein, pode ser só uma ideia para desempacar o frila, mesmo.

Esse método é algo que, acredito, muitos escritores e criativos de todas as áreas descobriram intuitivamente. Nos dez anos em que fui colunista da revista Capricho, eu alternava entre crônicas escritas em vinte minutos e crônicas que travavam no segundo parágrafo; quando o texto não saía, geralmente eu desencanava dele e ia caminhar, ou comer arroz doce e conversar com minha mãe, mesmo que o prazo fosse o dia seguinte. Algo em mim me dava a certeza de que na manhã do outro dia eu teria o texto inteiro, e era isso que acontecia. Algumas vezes, vinha uma crônica sobre um assunto sem nenhuma relação com aquele primeiro texto; outras vezes, vinha uma que aproveitava uma parte. Um dia, alguém na redação me sugeriu escrever três ou quatro crônicas para deixar guardadas, “de gaveta”. Foi isso que passei a fazer, e deixei de depender tanto da mágica. Mas, em outros trabalhos, surgia a necessidade dela. Assim, o conselho de Béatrice serviu, para mim, como um lembrete dessa técnica, ou um tapinha nas costas nos dias em que travo diante do computador e decido deixar tudo parado e sair para uma longa volta. Depois da leitura, passei a fazer isso com o aval de Béatrice. Como todo escritor inseguro, adoro avais.

De um tempo para cá, percebo que as tarefas da casa têm desempenhado um papel interessante na hora de organizar minhas ideias e destravar escritos. Para os livros que ando escrevendo, os vídeos que tenho gravado e alguns outros projetos autorais que tenho feito, as ideias têm surgido sem complicação (preciso lembrar de acender uma vela em agradecimento; a quem ou o quê, não sei ao certo, mas gosto de agradecer). Porém, para os frilas, o processo é diferente do trabalho autoral: não é que a ideia veio e você a seguiu; você está lá vivendo sua vida, aparece a encomenda, o job, e aí você precisa ter a ideia. É aí que entra o cesto de roupa suja, a pia cheia de louça, o cheiro de bolo esperando para sair do saco de farinha.

Tenho parado de encarar como um fardo a louça suja em cima da pia, os lixos do banheiro, a roupa para lavar. Antes, eu deixava tudo acumular e então fazia a tarefa na correria e me lamentando por não estar fazendo outra coisa mais interessante; agora, faço um pouquinho todo dia e aproveito para não pensar em nada enquanto faço. Pensamentos indo e vindo como balões cuja cordinha não puxo. Som de água batendo no fundo da pia. Sabão em pó conversando com a fumaça do café.

Certa vez, quando um roteiro institucional não saía de jeito nenhum, fui fazer um bolo de milho. Enquanto eu (minhas mãos?) debulhavam o milho, eu não pensava em nada, lista de tarefas, noticiário, e aquele telefonema que você precisa dar, Lili, e essa ideia que preciso ter ainda hoje, antes da reunião, e essa ssssssh. Sssssh. Panela de pressão. Arroz secando. Água jorrando da máquina para o tanque. Ssssh.

Enquanto mexo a massa de um bolo, não há problema a ser resolvido ou mesmo ideias a serem aguardadas, há apenas minhas mãos e a massa do bolo, e tudo entre nós é simples e bom. Enquanto minhas mãos estão ocupadas e minha mente em silêncio, as ideias vão se movimentando dentro de mim com a mesma autonomia do meu coração, que bate sem que eu jamais precise avisá-lo; com a mesma naturalidade do meu estômago digerindo, dos meus pulmões inspirando e expirando, do meu sangue correndo. Não coordeno o balé aqui dentro do meu corpo, acho que mando em minhas mãos quando elas parecem ter uma sabedoria própria, o aroma do bolo me faz esquecer completamente o roteiro que preciso entregar e opa, eis que surge a ideia. Seja bem-vinda. E obrigada.


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Liliane Prata
 é escritora e jornalista. Fundou, com Anita Deak, o grupo Escritorxs de Quinta. Entre seus livros, estão Sem Rumo e O Novo Mundo de Muriel (Planeta). Seu próximo livro sai em breve. Mantém o canal da Lili, onde fala sobre comportamento.