GERMINAÇÃO ATRAVÉS DO FRACASSO, CIRCULARIDADES SECRETAS E ALGO QUE IMPEÇA A DILUIÇÃO DO ESPÍRITO – MARCELO ARIEL

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Marcelo Ariel

 

“A vida é maravilhosa, mas uma pessoa precisa saber desprender-se de tudo o que desgraçadamente dá felicidade aos imbecis.”

Albert Cossery

 

No fundo não há nenhum sentido em medir o tempo, há o instante em que se nasce e o momento fulgor em que se morre e no meio gozos, risos, surtos, choros e epifanias. A sociedade humana luta contra a natureza porque a teme como teme a morte, sem saber realmente o que é e como retornar a ela ou dela, como retornar ao mundo, as fugas geográficas  são insuficientes como toda fuga que não se converte em viagem sem fim, a diferença entre o vírus e o antivírus é cada vez menor, a esperança não age, orações e mentiras elegeram políticos imbecis e o bom mocismo e a ilusão da pureza heroica migraram de vez para o ficcional. As exceções são poetas falhados erguendo um brinde ao maravilhoso fracasso invisível. Que venham os saraus infinitos nos presídios, que venha a prisão dos dez mil, a fusão absoluta entre os partidos e as facções ocorreu no século passado e não ontem e é irreversível, os novos livros de poesia enterrados no deserto  serão essas flores difíceis, o pólen, o pólen…

Se tornou urgente a criação de um campo transcendente aberto e expansivo de desnomeação desse  nomadismo pleno que no fundo converge para a dimensão exílica dos escritores. Diante disso, muitos têm uma reação cínica de aceitação, diante dessa dimensão do  imensamente precário que é a vida da maioria dos escritores,  estetiza-se a dificuldade e que se faça a negação do poder e não a da vida, sempre. Partindo de subjetividades que respiram seu lugar na negatividade e através do campo movente da escritura a atravessam até uma floresta de esvaziamentos, ética e ética só caminham juntas durante esse trajeto? Como se desvincular e contornar a guetificação da subjetividade? Do concurso grego de dramaturgia, pai de todos os prêmios literários, surgiram e se disseminaram Eurípedes, Aristófanes e  Ésquilo. Também é certo que das centenas de peças de Ésquilo  nos chegaram apenas algumas que contamos nos dedos. O que significa isto? Se esquivar da mistificação dos artistas que jamais serão essa classe especial que os poderosos projetam em uma esfera guetoizada, inclui se esquivar também de qualquer filiação ao poder literário? Creio que sim.

Existem esquemáticos  e  tolos paroxismos criados pelo desejo fantasioso e neurótico de controle da realidade via discursos/gritos/gestos delirantes/slogans/falsas notícias e potentes blocos de anti-realidade emitidos pela grande parcela  da população que não aceita e quer opaciar, destruir  a alteridade, por outro lado, visões dicotômicas falsamente épicas tendem a reduzir a capacidade de ver e pensar com nitidez e escondem de vista,  clareiras de convergência que apontariam para um projeto-em-ato (ética profunda). Mas não se fala em projetos de ações convergentes quando o mesmerismo dos nomes e do culto da personalidade contaminam como gases letais o pensamento e não o tornam possível. Identidades-Matrioska mesmerizam a realidade por fora e tornam difícil a percepção de seu corpo que é nosso corpo. É como se os círculos na água tivessem mais importância do que a pedra que os originou, esquece-se da pedra e o mais absurdo esquece-se do Sol, não há nada de novo debaixo dele e etc. Coronelismo & Messianismo estão de mãos dadas caindo no abismo da história na velocidade dos anti-sonhos, névoas e pesadelos que tendem a se dissipar na luz do Sol que só poderemos ver fora da neblina da cibernética. O tempo é a energia que compõe o corpo da esfinge e as respostas são ações diretas que exigem alegria e coragem. Criação e não expectativa & projeção.

Para os refratários de um discurso que “abraça o pensamento abstrato”, encerro essa coluna com uma nota sobre o filme IMAGEM E PALAVRA de Godard, ressaltando a importância da obra de Albert Cossery no filme, como não exalto a tão necessária pedagogia jornalística, peço aos amigos e amigas que façam uma densa pesquisa para saberem de quem se trata. Cossery realizou em sua vida essa fusão da estética e da ética com a contemplação do mundo dentro daquilo que os taoistas chamam de ‘Wu Wei’, o não-agir que é um estado de consciência que cria convergências entre a subjetividade e o acontecer naturante da vida. O filme de Godard se afina com essa ética/estética/mística de Cossery ao eleger as imagens como pensamentos autônomos sobre a dissonância e ruídos significativos que anunciam a tensão de uma guerra sutil e diluída em nossos corpos, entre a língua e a linguagem. Acho que já é suficiente, até a próxima.

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Marcelo Ariel é poeta, performer e teatrólogo. Autor de “Jaha ñade ñañombovy’a  (Penalux), entre outros livros, lança em breve “Ou o Silêncio Contínuo” (Kotter Editorial), com sua poesia reunida.