|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Anita Deak
Não há apenas um jeito de compor um romance; acredito que cada obra exige um tempo e uma metodologia, mas se eu fosse dar apenas um conselho aos autores ambiciosos, eu diria: tem certeza de que não vale a pena entender um pouco mais do que pode estar por trás do seu texto antes de publicá-lo?
Se o autor quer atingir a singularidade literária, talvez ele precise fazer um diagnóstico do que o seu uso da palavra revela. Tenho a teoria de que poucos afortunados chegam à singularidade sem esforço. Penso que, mesmo eles, chegam a ela não por inspiração, mas por uma habilidade natural de usar a palavra e/ou o pensamento fora de contextos utilitaristas.
Quando crianças, falamos para comunicar às pessoas nossas necessidades e/ou afetos. Adultos, continuamos usando a palavra para nos organizar no mundo e, assim, utilizamos uma linguagem corrente com construções frasais cujo sentido possa ser captado rapidamente. A palavra nasce, portanto, para facilitar nossa vivência e, quando começamos a escrever, não raramente fixamos o uso dela dentro dessa dimensão literal e direta.
Os verbos de ligação (ser, estar, permanecer, ficar, continuar, tornar-se, virar, encontrar-se, ficar, viver) são os que mais encontro nos textos dos autores com quem trabalho. Uma praga, justamente por serem verbos que indicam o estado do sujeito, algo que usamos de forma automática pela necessidade natural de definir como estamos. São verbos imprescindíveis na vida cotidiana. Exemplos de uso de verbos de ligação que transmitem estados:
Esta menina é feliz (estado permanente)
Esta menina está feliz (estado transitório)
Esta menina anda feliz (estado transitório)
Esta menina tornou-se feliz (estado mutatório)
Esta menina parece feliz (estado aparente)
Esta menina permanece feliz (continuidade de um estado)
Na Literatura, no entanto, o excesso de verbos de ligação relacionados a um personagem pode tornar sua construção fraca. Quando se entrega, por exemplo, que um personagem está assim ou assado ou é assim ou assado com muita regularidade, não sobra espaço para o leitor chegar a essa conclusão sozinho. A felicidade de uma menina, construída pelo caminho literal e curto do verbo ser, pode revelar um padrão de pensamento do autor que escolheu o verbo – não porque ele seja o mais adequado –, mas porque o pensamento o levou automaticamente a ele.
Como esse autor construirá singularidade textual se não percebe que sua linguagem pode estar trancada em construções automáticas? Se ele não reflete sobre a importância da escolha dos verbos na construção dos personagens? Tomando consciência disso, o autor pode deixar a felicidade da menina nas entrelinhas de um ou mais verbos de ação e também na entrelinha de uma interjeição (por favor, me deem um desconto porque são 5:52 e eu ainda não dormi): Longe dos olhos adultos, a menina afoga o indicador no glacê do bolo de aniversário, a mãe aparece, ela corre para trás da pilastra, a mãe some, oba!, de novo a menina perto do bolo, fura com o pai de todos, o pai de verdade aparece, um dois três pilastra, os pequenos pés se escondem, os dedos rápidos, o suor na fronte, podia ser meu aniversário amanhã também!
Bem, talvez esse trecho tenha passado mais satisfação do que felicidade, talvez eu tenha exagerado porque joguei um indireto livre no meio de um narrador em terceira pessoa num exemplo que era para ser didático (eita, duas vezes o verbo ser na mesma frase, veja a marcação em azul), imagine ser escritor com esse tipo de paranoia, esquece o que falei até agora, largue esse texto e seja feliz, autores ambiciosos dificilmente são felizes, eles entram em fluxos de consciência a respeito da forma, então voltemos ao ponto: por que reconhecer padrões pode pavimentar seu caminho para a singularidade?
Bem, existem dois tipos de autores singulares: os que eu chamo de formalistas – preocupados em tirar a palavra de estruturas sintáticas confortáveis para criar novos campos de significados – e os que fazem um uso mais corrente da palavra porque a singularidade do personagem está acima da singularidade da linguagem. No primeiro caso temos Ulysses, de James Joyce, em que a linguagem domina tudo à sua volta; no segundo, O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, cuja estrutura de linguagem, pouco singular na organização sintática dos períodos, assim o é para adequar-se à construção de Alexander Portnoy, que narra em primeira pessoa.
De qualquer forma, mesmo que Roth jamais tenha levado a linguagem às raias da loucura como fez Joyce, ele consegue criar um personagem singular com o uso de outras cartas na manga. Veja como os verbos comuns ser e estar abrem caminho, nesse caso, para ressaltar a imagem poderosa da mãe de Alexander no início de O Complexo de Portnoy: “Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano da escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada”.
Na minha opinião, se a linguagem é comum, o personagem precisa ser extraordinário para que o livro seja singular. Se o personagem é comum (Florentino Ariza, em O amor nos tempos do cólera, de Gabriel Gárcia Márquez), a linguagem precisa, então, oferecer a dose de singularidade necessária. De qualquer forma, é preciso refletir se o “comum” dentro do texto serve a um propósito ou se revela apenas uma relação apressada e pouco conscienciosa do autor em relação à própria escrita. Um livro com linguagem comum e personagens comuns não atinge a singularidade porque o autor não explorou nem a palavra – fora de sua dimensão automática e óbvia – nem construiu densidade de personagem para contrabalancear a linguagem mais corrente.
Seja o seu caminho a experimentação da palavra, seja ele a palavra falando baixinho para que o personagem cresça, será preciso tomar consciência das suas escolhas. Autores singulares, na minha opinião, são maestros – não, maestros não, são grandes chefs. Eles escolhem e dosam os recursos literários, colocam na panela em branco (nossa, foi horrível essa, me perdoem, são 7h18, estou há quatro horas nesse texto e ainda não dormi), enfim, eles sabem porque colocam sal, porque colocam açúcar, a medida certa de cada coisa para a receita não desandar, enfim, eles sabem ou, pelo menos, buscam saber.
Não, essa comparação foi péssima, não existe receita para escrever bem, para atingir a singularidade numa obra, ok, eu desisto, estou com sono, com fome, acabei de destruir toda minha argumentação, mas se você olhar com atenção para os seus verbos de ligação (ão com ão, senhor) para os excessos de “que” e para todo esse vocabulário que pula no seu texto sem sequer pedir licença, é possível que construa arranjos que sejam genuinamente seus, ou personagens que sejam forjados e não paridos aleatoriamente como tantos outros na prateleira.
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Anita Deak é escritora, editora de livros e fundadora do Coletivo Escritorxs de Quinta. Nasceu em Belo Horizonte. Seu romance de estreia, Mate-me quando quiser (2014), foi finalista do Prêmio SESC de Literatura. Atualmente, escreve No fundo do oceano os animais invisíveis. Você pode conferir o que ela fala sobre Literatura nos stories do Instagram