Eu me propus a mudar os dias-torrentes com o caldo de sentimentos que ainda sobrava. Fiz esforço. Uma tarefa árdua para uma passarinha. Mamãe tinha medo, na juventude, que morresse do coração, de tão frágil. E dizia: “Como pude desleixar da minha única filhinha?”. Culpava-se por tudo, desgraçada como eu…
Se depender de mim, juro, não tenho pés que suportem o peso da minha consciência, desde a morte de mamãe, com o estrondo que, não só a ela, desterrou minh’alma dessa dimensão.
Na noite do dia treze, pouco se tinha a fazer, é verdade – esse é o meu auto-exercício de ressignificação, talvez inócuo, tolo. Mas não me conformo com uma tal fatalidade que dizem, e ignoram as circunstâncias nefastas de uma vida austera e sem cor – só nós a vivemos, imbecis papagaios repetidores.
Dona Domingas, após a morte do papai, caiu em profunda depressão – e não havia remédio para alçá-la à realidade. Dr. Cipriano de Alencar, o mais renomado psiquiatra da paróquia, com o qual gastei os tubos, patinava na medicação; ia e voltava, com testes que poderiam ser comparados aos aplicados às cobaias. Revoltei-me, pisei o resto do medicamento e os seus pés, no que, de imediato, fui levada e trancafiada por seus comparsas, brutamontes, numa masmorra.
Passei sabe-se lá quantos dias, zonza, sem me localizar. Ulisses, pretérito-futuro esposo, foi ao meu auxílio. Ligou os pontos até chegar ao covil e me arrancar, com força policial. Suspeito que o canalha do Mengele das Américas deva ter implantado algum mecanismo de progressão degenerativa em mim dessa vez, como o fez em mamãe.
No fatídico dia, cedo da manhã, Ulisses – apenas ele seria capaz – me convidou para um jantar à luz de velas, no La Maison. Não tenho tato para esses arroubos grã-finos; ainda pensei em recusar, mas era Ulisses, o homem que suportava o peso do meu corpo, me mantinha em pé; reconectava as fissuras, os fios desencapados do meu cérebro.
Proceder à la cu doce não é comigo. Arrematei: “Queria que visse, agora, meu olhar de convicção, Ulisses. Claro que sim!”. A dor de cabeça, no entanto, que redundaria em incontrolável ansiosa, era deixar mamãe em condições de simplesmente dormir – para os mortais, simplesmente; para mim, o caos. Mamãe, nesse dia, estava agitada, como se procurasse por algo ou alguém; um suporte. Nenhuma palavra pronunciou. Com os olhos, sem pestanejar, fixava-se ao teto branco neve; a figura do nada. Senti um ardor no coração, uma palpitação fora do normal, mas segui nos preparativos.
Dei banho e a perfumei; penteei os seus finos cabelos cândidos e hidratei sua pele, com um composto à base de avelã. Coloquei-a sentadinha na poltrona do meu quarto. No espaço de tempo justo que fui tomar banho, com todas as pompas que o momento exigia – preparar-me para o desforro; vencer as vicissitudes de uma vida ordinariamente ordinária –, escutei um baque na sala. Imaginei um horrível acidente na rua, um abalroamento de grandes proporções, que fazia chegar ao décimo andar o fragor – sei lá, impressionada com os desastres desses tempos sombrios. Saí esbaforida, em polvorosa, sem me atentar para mais nada que houvesse deixado pelo caminho. Nem pensei em mamãe – daí o choque maior. Dona Domingas havia amarrado uma corda no lustre piramidal da sala, se dependurado com a ajuda de uma cadeira e pulado de uma altura de um metro e meio. Não houve preparo: a corda fina arrebentou com o peso do seu corpo, aproximadamente noventa quilos.
Estava esparramada no chão, desacordada, quando peguei em seu pulso para acudir a minha reles esperança; sem uma gota de sangue no rosto. Não consegui apalpar seu corpo à procura de fraturas. Sou fraca, tenho medo da verdade. Iludo-me à espera de um porém, um quiçá. Aperreei-me; liguei primeiro para Ulisses, que não atendeu. Em seguida, para a emergência da Santa Casa. Palavras, poucas, irrompiam soluços, catarros e engasgos. Dez minutos para completar o fastidioso procedimento, que, na verdade, não ajudaria em nada um ser prestes a morrer. Para mamãe, no entanto, não havia saída. Resta-me procurar uma para mim.
_______________________
Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.