O CRISTAL DO ACONTECIMENTO – MARCOS VINÍCIUS ALMEIDA

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Marcos Vinícius Almeida

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monumento às bandeiras, 2016, Jaime Laurinano.
base de tijolo vermelho e réplica do Monumento às bandeiras fundida em latão e cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar e Forças Armadas Brasileiras
20 x 9 x 7 cm
foto Filipe Berndt

 

I

“Obterás o efeito de uma noite de lua se escreveres que na represa do moinho um caco de garrafa cintilava como uma estrela vívida e a sombra de um cachorro ou de um lobo rolava feito bola”, diz Tchékhov, numa carta de 1886. A frase, extraída da coletânea [1] que reúne dicas literárias, bibliografia onipresente em cursos de escrita criativa, sintetiza um problema que eu desejo – nem tanto resolver -, mas pelo menos colocar e expor com esse texto. A saber: por que o uso do elemento concreto, no nível da frase (adjetivos, imagens e metáforas), é um consenso positivo do bom estilo, como no exemplo acima, mas, quando passamos ao nível do motivo, ou do tema, o uso de elementos concretos (datas específicas, contexto histórico, problemas da época, nomes de lugares e personagens) é visto como algo raso e, como disse uma amiga, “limitador”?

II

Seguindo o conselho de Tchékhov, não devemos falar da Lua em geral, tampouco da grande questão do que é “uma noite de lua”. A lua e a noite são universais demais, abstratas demais, ou seja, imagens vagas, logo, sem vitalidade. A potência expressiva, a singularidade do luar tchekhoviano, jamais será encontrada no céu da lua “em geral”, mas num minúsculo caco de vidro enterrado na beira da represa, na sombra de um cão manco, rouco e vadio. Em literatura, nos ensina Tchékhov, deve-se olhar menos para o céu das grandes abstrações, e mais para as ruínas da experiência concreta. Quase ninguém discordaria de Tchékhov. É assim que são construídos os diálogos certeiros de Hemingway e Cormac McCarthy, a paisagem seca e viva de Graciliano Ramos, o verso cortante de João Cabral de Melo Neto, as guinadas vertiginosas de Alice Munro, e até mesmo a reflexão de W. G. Sebald sobre os bombardeios na II Guerra [2]. Imagens concretas, específicas, encarnadas na vitalidade do particular. O que efetivamente o conselho de Tchékhov nos ensina é que o texto literário se constrói, senão em aderência às ruínas do real, em uma estética das miudezas concretas.

III

Causa-me grande estranheza quando, numa resenha qualquer, o crítico se apressa em limpar o terreno e dizer – quase pedindo desculpas, que: “apesar de ser ambientada nos Anos de Chumbo, a narrativa do filme não se limita aos problemas da época, mas trata de grandes questões humanas”. Em um contexto como o nosso, pedir desculpas por chamar as coisas pelos seus nomes parece-me muito mais um ato falho ético do que um procedimento em busca de rigor estético. Ato falho ético porque “as grandes questões humanas”, essa tautologia vazia, soterram e esmagam desaparecidos políticos, assassinatos, mortes e torturas. É sempre em nome das grandes questões humanas em geral que se esmaga as pessoas concretas e singulares.

IV

Baudelaire, em um ensaio muito popular, afirmou que “a Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”. Não sei se o diagnóstico ainda faz sentido para nossa época. Mas, diferentemente da literatura, as artes plásticas parecem ter se libertado do peso da outra metade, ou seja, do eterno, do imutável. Mesmo porque, o eterno e o imutável supõem uma realidade homogênea, sem historicidade, sem conflitos, sem partilhas. Penso, por exemplo, no trabalho de Jaime Lauriano, na série Quem não reagiu, está vivo ou Bandeirantes. É um artista que não teme chamar as coisas pelo nome. E, longe de buscar uma outra metade no imutável, seu trabalho corrói essas noções, fissura os discursos oficiais e símbolos que almejam a eternidade. Se tivesse que dar um nome, acho que poderíamos dizer que o trabalho de Jaime Lauriano se fundamenta num poderoso materialismo narrativo.

V

“A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem”, diz Benjamin, em um dos fragmentos do livro das Passagens [3]. E continua: “erguer as grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total”. Carlo Ginzburg, e seu paradigma indiciário, talvez concordasse com essa forma de construção. E também Tchékhov, e sua lua aprisionada no caco de vidro enterrado à beira da represa. Essas coisas estão na origem da própria narrativa: aqueles caçadores primitivos, rostos colados ao chão, rastreando as pegadas, marcas, rastros de uma besta na floresta. Foram eles os primeiros narradores, conjecturando narrativas a partir de indícios esparsos. Mas eram também adivinhos: olhando para o passado como quem prevê o futuro.

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Marcos Vinícius Almeida
, escritor e jornalista, é autor do volume de contos Paisagem interior (Penalux, 2017).

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[1] TCHÉKHOV, Anton. Sem trama e sem final – 99 conselhos de escrita. Seleção e prefácio de Pierro Brunello. Trad. Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.66.

[2] Falei disso no ensaio Formas de capturar a dor, na edição especial da Revista Gueto, sobre Política.

[3] BENJAMIN, Passagens, v. II, (N), teoria do conhecimento, teoria do progresso, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2018, p. 765.