|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Liliane Prata
Juliana não chega com o estado de espírito pretendido no dia da caminhada no labirinto. Recebeu uma notícia de manhã que anda mexendo com ela. Tinha até desistido de ir ao evento, mas acabou achando que vai ser bom para se acalmar. Além disso, já havia marcado com sua amiga Karina.
A caminhada no labirinto é um evento mensal promovido por uma ONG dedicada à saúde emocional. Até alguns meses atrás, Juliana não sabia nada sobre labirintos ou saúde emocional, mas, depois de passar uns dias em um espaço de convivência no interior do estado, ela começou a saber alguma coisa. Esse espaço de convivência pertence à dona da ONG, Vanessa, que aprendera sobre os efeitos terapêuticos dos labirintos nos anos 80. A lógica é a seguinte: ao se percorrer um labirinto, entrando e depois saindo, desatam-se os nós mentais. Assim, entrar e sair de um labirinto é particularmente bom quando se está às voltas com alguma dúvida, desconforto emocional ou confusão mental – ou seja, todos os dias. Pode-se utilizar os mais diversos tipos de labirintos. No jardim do espaço de convivência, havia um grande labirinto oval, onde Vanessa, sua família e os hóspedes caminhavam. No primeiro dia no espaço, Juliana perguntou por que Vanessa havia construído aquele labirinto (antes, na verdade, perguntou por que Vanessa usava o termo “espaço de convivência” em vez de simplesmente “pousada”. Vanessa respondeu: “Foi depois de hospedarmos um executivo que reclamou que os travesseiros eram muito finos e ele precisava empilhar um em cima do outro para conseguir dormir, e que não havia suco de blueberry integral no café da manhã”). Foi então que Vanessa contou a Juliana tudo sobre o efeito terapêutico dos labirintos, inclusive alguns casos bem-sucedidos do uso de labirintos em pacientes de hospitais e presídios, de que ela havia tomado conhecimento em um congresso internacional sobre labirinto, na Califórnia. Vanessa aproveitou para explicar a Juliana a diferença entre “labyrinth” e “maze”, os dois tipos de labirinto que são distinguidos na língua inglesa: “No labyrinth, a saída pode ser demorada, mas o caminho é um só. No maze, você tem vários caminhos errados. Se a pessoa quer desatar os nós mentais e usa o maze, aí é que fica pirada, mesmo.” Juliana achou tudo aquilo muito interessante e, por isso, vai participar da caminhada mensal no labirinto promovida pela ONG de Vanessa.
O grupo está em um casarão no bairro Saúde, onde há um labirinto (labyrinth) circular no quintal. Alguns já estão entrando rapidamente dele enquanto lamentam não estarem sentindo nada de diferente. Vanessa pede calma e conexão. Daqui a pouco, ela reunirá todos dentro do labirinto para a caminhada de uma hora. Juliana está afastada do grupo, servindo-se na mesa onde há frutas, pão de queijo, café e água. Está ansiosa para Karina chegar. As duas são amigas há anos, mas estão sem se ver há um bom tempo, e o labirinto vai ser uma boa oportunidade para se reencontrarem. Juliana gostaria de desabafar com Karina antes de Vanessa chamar todo mundo.
Desde que chegou do espaço de convivência, Juliana tem usado diariamente o labirinto que pintou em um tecido e que se encontra na gaveta do seu criado mudo. Gosta de percorrê-lo com uma caneta fechada antes de se deitar. Na sequência, ela se masturba pensando no labirinto, apaga a luz do abajur e dorme. Todo o ritual de bem-estar começa, na verdade, com Juliana girando 21 vezes antes de ir para a cama. Essa prática também foi ensinada por Vanessa, que sugeriu a Juliana que substituísse pelos giros os polichinelos que sempre havia feito antes de dormir. Parece que girar 21 vezes é um ritual tibetano que reduz a confusão mental e aumenta o bem-estar. Semana que vem, Juliana irá para a sua primeira sessão de análise, também com Vanessa. Juliana faz de tudo para reduzir sua confusão mental e aumentar seu bem-estar.
Finalmente, Karina chega, com seu cabelão esvoaçante e seus olhos sedentos por tudo o que se refira a labirinto. Ainda não sabe nada sobre eles.
– Que saudade, Ju! Me dá um abraço aqui! Ei, que cara é essa? Ei, vai chorar? Calma, calma…
– O Gustavo vai sair da casa dele, amiga. Ele me contou hoje mais cedo. Disse que teve uma longa conversa com a mulher, que ela entendeu. Que chegou a hora certa. Que os filhos já estão crescidos. Que finalmente vai viver ao lado da mulher que ele ama de verdade, e adivinha quem é essa mulher, sou eu!
– Como assim, Ju! Essa é uma ótima notícia! Benza Deus!
– Benza Deus, nada! Eu não queria que ele tivesse saído de casa!
– Ué, eu achava que você quisesse… Vocês estão juntos há oito anos, finalmente ele criou coragem pra se separar.
– Nossa, amiga, no começo, eu até queria, mas isso foi lá atrás. Agora, eu estava gostando tanto dessa nossa vida, ele dormir lá em casa uma vez por semana, no dia da “viagem de negócios”… Às vezes um jantar ou um drinque rápido às quartas, depois da academia, e pronto, eu tinha a cama toda pra mim, as noites todas pra mim, e quando a gente se encontrava era sempre tudo tão gostoso, tão leve, oito anos de gostosura e leveza, isso não é pra qualquer casal.
– Mas e os Natais? E o seu aniversário? Eu me lembro de você triste porque ele não passava o Natal com você, angustiada porque ele nunca sabia se poderia ir ao seu aniversário.
– Isso no começo, né! Depois, puxa vida, eu sempre passo os feriados com minha família no interior, você sabe, meu pai reclamando de tudo, minhas tias todas tristes e bêbadas, meu primo Joaquim que fica gritando que quer morrer, meu primo Antônio se candidatando para matá-lo, minha avó indo e voltando da cozinha falando que quem morrer ou matar vai ficar sem comer seu frango especial cheio de hormônios. Eu não sei se quero o Gustavo participando disso, essa convivência íntima é uma delícia, mas manda o tesão para o espaço. Como seria a convivência do Gustavo com a minha família, amiga? Os meus pais ainda me enchem a paciência porque terminei com primeiro marido, você sabe, todo mundo adorava o Beto apesar de não suportá-lo, todo mundo menos a minha avó, que só não o suportava, mesmo; ela não gosta de ninguém novo na casa e odeia homem, te contei que ela fica escondendo as roupas preferidas dos genros e botando sal em vez de açúcar no café deles e falando pra eles que eles que se confundiram? Tão gostoso ficar comendo pudim e contando casos com minha família, e depois ir para um canto, ficar namorando o Gustavo no celular, depois ficar rindo com minhas primas dos caras que aparecem no aplicativo de encontros, depois voltando para ficar com minha família, tudo tão harmônico, tão mais gostoso do que quando eu era casada com o Beto e ficava vendo ele no sofá gritando sobre política com meu pai ou discutindo com a minha avó, falando que quando ele foi ao banheiro ela botou sal no café dele… E quando o Beto ficava escondido no telefone, falando com a namorada dele? Eu fingia que não via, então eu aproveitava e ia falar com meu namorado, meus tios sabiam o que o Beto estava aprontando e ficavam rindo de mim pelas costas, minha avó piscava pra mim e ficava rindo do Beto… Mais dia, menos dia, o Gustavo ia ficar que nem o Beto, eles ficam todos iguais, o Gustavo ia ficar andando com aquele pijama furado pela casa, com preguiça de fazer sexo quando eu queria… E o quanto o Beto enchia a minha paciência toda noite, quando eu fazia meus polichinelos antes de deitar? O Gustavo até comenta, mas só uma vez por semana.
– E o réveillon? Lembro de você triste porque o Gustavo não foi com a gente aquela vez para a praia.
– Ah, aquela temporada em que choveu todo dia, eu só chorando pensando no Gustavo, verdade, eu tinha esquecido, eu cheguei a apagar minha conta do aplicativo de encontros, que boba, eu… Mas no ano seguinte, amiga, você perdeu, fiquei num hotel incrível com minhas amigas do trabalho, se quiser pode ir com a gente este ano, ainda tem vaga, a gente fica num hotel maravilhoso todo ano, já começa a economizar seis meses antes, e aí como posso reclamar? Hotel maravilhoso, muito sol e mar, caipirinhas, drogas variadas, ano passado fiquei com um argentino diferente a cada dia, eu selecionava “argentino” no aplicativo e a cada dia saía com um, depois enjoei e digitei “uruguaio”, mas sem querer troquei “o” por “a” e acabei saindo com uma uruguaia mais guapa que a outra, como vou reclamar, como? Olha para a minha cara, como vou me acostumar agora à vida sem liberdade? Como vou querer um relacionamento, meu Deus, como se chama isso mesmo, estável?Agora, não sei como vou fazer, agora eu…
O celular apita. Mensagem de Gustavo.
– Meu Deus! Ele está dizendo que vai começar a vida com que ele sonha há tantos anos. Ferrou, amiga, ferrou. Agora ele escreveu que quer viver comigo uma vida “harmônica e serena”. Deus me livre! Ele só pode estar de brincadeira.
– Calma. Respira. Esse casamento dele não tem salvação mesmo?
– Não tem! Não tem!
– Calma. Não vamos perder a esperança, Ju. Agora que as crianças cresceram, quem sabe eles não recuperam a magia da vida a dois?
– É, pode ser. Quem sabe se eles viajarem juntos, faz tempo que eles não viajam…
– Tá vendo? Você já começou a ter ideias. Eles conhecem Portugal?
– A lua de mel deles foi lá.
– Quem sabe se eles voltarem, a paixão não reascende?
– Pode ser… Mas amiga, ele já conversou com a mulher dele, como vou fazer?
– Ele só conversou, ainda não saiu de casa, calma. Vai cozinhando em banho- maria. Inventa uma viagem de trabalho, aí ele vai ficar sozinho e perder a coragem.
– Pode ser uma boa… Mas como vou convencê-lo a viajar com a mulher dele?
– Calma, a gente vai pensar em alguma coisa, eu posso fingir que estou vendendo um pacote de viagem e ligar pra ele, depois a gente vê. Primeiro, vamos cuidar da sua viagem.
– Que saudade eu estava de você, Ká.
– Eu também, eu também.
Vanessa chama o grupo para entrar no labirinto. A caminhada transcorre bem. Uma hora depois, todos saem, menos Juliana. Parece que Vanessa se confundiu e em vez de labyrinth acabou construindo um maze.
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Liliane Prata é escritora e jornalista. Fundou, com Anita Deak, o grupo Escritorxs de Quinta. Entre seus livros, estão Sem Rumo e O Novo Mundo de Muriel (Planeta). Seu próximo livro sai em breve. Mantém o canal da Lili, onde fala sobre comportamento.