|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Anita Deak
Escrever é uma forma de tentar entender o ser humano e a vida, ainda que os personagens e a narrativa, na minha opinião, não tenham a obrigação de emular ou representar aquilo que nos acontece. Penso que a Literatura toca na vida não pela emulação direta ou pela representação literal, mas por trabalhar com ideias simbólicas organizadas narrativamente. Ideias que, sim, existem no dia a dia, mas de forma dispersa ou às vezes ignorada. Ideias nem sempre valorizadas pela sociedade em que vivemos. Hoje eu vou contar a história de Pedro Justiniano Coriolano Naves, personagem do meu próximo romance (No fundo do oceano os animais invisíveis), e de como a construção dele me faz entender cada vez mais que a forma com que escrevemos representa também nossos questionamentos em relação ao mundo.
Quando comecei a construir Pedro, estava muito preocupada com questões básicas: verossimilhança e trajetória pautada pela jornada do herói. Queria entender o caminho dele como entidade literária que percorre de A a Z. Pensei em cenas que definissem quem ele era psiquicamente, internamente, mas, conforme fui avançando no livro, passei a questionar minhas próprias premissas. Essa necessidade de definição (de quem se é) é uma demanda do mundo, assim como a de estabelecer causas para as ações. Eu estava construindo Pedro a partir da psicanálise, da luz e da sombra, colocando nas entrelinhas uma estrutura baseada na teoria freudiana sobre a organização psíquica. Havia vantagens? Claro. Ao ter como base uma estrutura inteligível pelos leitores (ainda que de forma subliminar) e vista em tantos romances clássicos e contemporâneos que adoramos, eu estava jogando as regras de um jogo palatável e bem-sucedido: a de exibir uma entidade abarcável, categorizável, dentro de uma conceituação que separa eu, inconsciente, superego e que também desenha uma fronteira nítida entre personagens e cenários.
Vieram as dúvidas: Ok, como tirar Pedro dessa baia sem que isso o torne superficial? Comecei a pensar nos elementos que conferem densidade a um livro. Na minha visão, um livro potente trabalha sobre dois vértices: construção de personagem e linguagem. Isso não significa, no entanto, que o personagem só possa ser solidamente construído se o autor adotar apenas premissas psicanalíticas que levam à ideia de unidade fechada do personagem. E se eu buscasse a densidade na fronteira? Aí começou a brincadeira. Para não dar um pau no cérebro dos leitores, passei a trabalhar com três chaves. Em algumas cenas, sobretudo as dos capítulos iniciais, Pedro é construído pelo viés da psicanálise, com inputs de seu mundo interno que age e reage sobre o mundo externo. Aos poucos, fiz uma transição em que Pedro, na sua relação com os animais, migra para seus corpos e vice-versa, mas, nesses trechos, ainda há fronteira. No terceiro ato, em que meu personagem está no Araguaia (meu Araguaia fictício, só para frisar) combatendo a ditadura militar no meio da floresta com os companheiros, as fronteiras são paulatinamente dissolvidas.
Pedro já não é o vetor único da narrativa. Ele narra, a onça narra e os dois narram juntos, ao mesmo tempo, sem que haja distinção da voz que fala. O narrador se dilui no cenário e no personagem, misturando-se a eles. Uma cena do passado cabe dentro de um copo de café de uma cena do futuro, outra cena começa há 10 anos e continua 20 anos depois, exatamente do ponto em que havia parado. Será que essa cena parou realmente, num lapso de tempo apenas? Isso é recurso do cinema, não se tratava disso. Intuí que a cena tinha sempre continuado. Assim como continuam os pensamentos conservadores, autoritários, os pensamentos animistas dos índios, todos esses discursos fracionados que existiam naquela época, que viram-se um contra os outros e não convivem nos tempos atuais.
A fronteira, no entanto, existe por que é construída e chancelada por uma forma narrativa – e aqui devo salientar que História também é narrativa, Economia, Cultura, pois a narrativa não pertence apenas à arte. A narrativa é uma organização de discurso, de estabelecimento de premissas e de elementos, da hierarquização e concatenação destes. Falando de Literatura, não é apenas o enredo de um romance, ou seja, a história que se conta, que faz a ponte entre a ficção e o mundo, mas também a organização simbólica e formal da linguagem. Sempre converso com os autores com quem trabalho: Seu jeito de narrar tem premissas discursivas – ainda que você não se dê conta delas. A que construção simbólica serve seu jeito de narrar? Ao que se liga a sua proposta estética? A que valores?
Um exemplo muito rápido. No Myanmar, de cultura budista, não se usava até os anos 1950 (agora, com o avanço do neoliberalismo, não sei) os pronomes possessivos. Como o budismo não acredita que qualquer coisa sobre a Terra seja de posse de alguém, o uso dos pronomes possessivos não fazia sentido para os myanmaraenses (acabei de supor esse sufixo “ense”). Esse pequeno exemplo mostra que, apesar de vermos a língua como se ela fosse algo muito inocente, ela não é. A própria sintaxe traz embutida nossas formas de ver o mundo. O que dizer, então, do nosso jeito de construir personagem por meio das premissas da sintaxe e sob a luz de áreas do conhecimento como a psicanálise? Não é um problema construir a partir de alguma luz ou luzes, mas você já pensou no que está em jogo ali por trás, subliminarmente?
Na construção de personagem está o mundo. Quando a narrativa chancela a separação, quando ela dá a entender que a compreensão do mundo deve sempre passar pelo contraste, pela definição categórica de si e do outro, do personagem como centro absoluto (olha o eco do iluminismo aqui), nos colocamos maiores do que somos. Talvez não parta apenas do personagem ensimesmado em si mesmo (sim, redundância, acho que cabe) a possível compreensão do mundo. E olha que eu amo autores que trabalham nessa linha, dentre eles José Saramago e Victor Hugo, por exemplo. Eu só me pergunto se estamos mesmo falando das possibilidades de mundo em nossa narrativa ou fechando o mundo em seus próprios sísifo-conceitos refletidos pelos aspectos formais que escolhemos ao narrar.
Talvez o mundo não seja para se compreender, sobretudo pelas lentes falhas das definições. A compreensão é sempre como um colapso na mecânica quântica: depende do observador se o que ele está vendo é onda ou partícula. Somos, no entanto, muitos observadores, observadores-personagens, observadores-verbos, observadores-cenários. Demorei meses para entender que Pedro Justiniano Coriolano Naves nunca foi só, apesar de, em muitos trechos do livro, dizer-se sozinho aos 73 anos de idade. Pedro é Justiniano, é Coriolano, é Naves, é o Araguaia, o narrador, os índios e os militares. Pedro também sou eu e a consciência de não separação que eu desejo para esse mundo.
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Anita Deak é escritora, editora de livros e fundadora do Coletivo Escritorxs de Quinta. Nasceu em Belo Horizonte. Seu romance de estreia, Mate-me quando quiser (2014), foi finalista do Prêmio SESC de Literatura. Atualmente, escreve No fundo do oceano os animais invisíveis. Você pode conferir o que ela fala sobre Literatura nos stories do Instagram