ABRIR OS OLHOS – MARCOS VINÍCIUS ALMEIDA

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Marcos Vinícius Almeida


Quando me sentei para escrever esse texto, lembrei-me por acaso que a primeira vez que ouvi falar dos Campos de Concentração criados nos anos 30, por Getúlio Vargas, para conter o fluxo da população sertaneja que fugia de uma das piores secas da história, foi no Ensino Médio. A imagem é difusa: lembro da professora de história erguendo uma dessas revistas semanais, mas não consigo me lembrar qual. “Campos de concentração no Brasil”, ela dizia. “No Brasil”. Hoje, refletindo sobre o assunto, fico imaginando como isso só me reapareceu, de modo impositivo, agora. E como sei muito pouco – ideias vagas, difusas, repetição de estereótipos – sobre esse pesadelo sangrento que é a nossa história.

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Cemitério das Almas, em Senador Pompeu.
Fonte: Ministério Público do Ceará.

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As imagens dos campos de concentração me chegam de maneira indireta. Pesquisando sobre outro massacre de uma comunidade no Nordeste, algo bem próximo do que ocorreu em Canudos, reencontro a história desses campos. Vidas secas é um grande livro, investiga bem seus personagens imersos na catástrofe social, responde bem aos problemas literários do seu tempo, mas talvez fique a quem da dimensão de horror do que ocorreu naqueles anos. Seria necessário escutar a voz dos sobreviventes, dar legibilidade aos arquivos. Visitar as ruínas, abrir os olhos para essas imagens. O que houve aqui? Conseguiríamos olhar e escutar isso de maneira justa?

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Os campos de concentração de Vargas foram elaborados com base em duas experiências anteriores: para evitar a catástrofe da seca 1877, quando, num fluxo migratório parecido, a população da capital cearense, Fortaleza, dobrou: aglomeração e fome, falta de condições sanitárias e infestação de doenças causaram uma onda de mortes sem precedentes. Em dez de dezembro 1878, mil cadáveres foram sepultados em um só dia: “Os corpos que chegavam iam sendo empilhados, novas covas abertas. A diária e a ração dos coveiros teve que ser dobrada pelo governo, já que doze deles haviam faltado ao serviço, também derrubados pela doença. Ao final daquele 10 de dezembro, às 7 da noite, quando os enterradores largaram o serviço completamente estropiados pelo cansaço, faltavam ainda 238 cadáveres para sepultar. Ninguém tinha forças para mais nada. Deixaram o resto do trabalho para o outro dia” (NETO, Lira. O poder e a peste: a vida de Rodolfo Teófilo. 2ª edição. Fortaleza: Edições Fundação Demócrito Rocha, 2001, páginas 98 e 99).

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“Ao retornarem no dia seguinte, depararam-se com espetáculo aterrador. Centenas de urubus formavam nuvem enegrecida por sobre o cemitério da Lagoa Funda. Ao chegarem lá, viram cachorros disputando com as aves os pedaços de carne humana em putrefação.” (FIRMO, Érico. O dia dos mil mortos, O povo online.)

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Os primeiros currais do governo apareceram na seca de 1915, mas atingiram maior complexidade na seca de 1932: eram interligados por uma rede trens, e se espalharam por várias cidades do estado, do Crato até a capital. Em Fortaleza, os nomes sugerem a dimensão do horror: Campo do Urubu, Campo do Matadouro.

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Alguns dos “alojados” nesses campos foram recrutados como soldados para lutar nas trincheiras em São Paulo, durante o frustrado levante paulista de 1932.

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Em Senador Pompeu, cerca de 20 mil pessoas foram alojadas numa barragem em construção, em 1932. Barragens das Almas. Em 1983, o Centro de Defesa de Direitos Humanos Antônio Conselheiro, e o padre Albino Donatti, da paróquia local, organizaram a primeira Caminhada das Almas, uma romaria que celebra a memória das vítimas daquele campo e a luta do povo do sertão por melhores condições de vida. Albino Donatti faleceu no dia 07 de agosto de 2013.

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A Caminhada das Almas continua.

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Fonte: Diário do Nordeste

 

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Marcos Vinícius Almeida
é escritor e jornalista.