PARA SEMPRE, SEMPRE – GAEL RODRIGUES

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Gael Rodrigues

 

“Quando você acha que acabou?”

“Como assim?”

“… teve um dia, um momento?”

“Do que você está falando?”

“Da gente. Eu e você. De quando tudo acabou”

“Quem disse que acabou?”

 

*

“Olha aqueles dois”

Ela estava sentada na grama e ele deitado. Era uma manhã de sol mas não tão quente. Outono. Parque cheio. Som de crianças ao redor e do vento nas folhas das árvores. Uma folha se soltou, sem querer, e aos poucos gostou de flanar pelo ar, e foi querendo, e quis, e pousou ao lado dele. Virou a cabeça preguiçosamente para ver do que ela falava.

“Os velhinhos?”

“Não, não. Os jovens”

Sentou ao lado dela para ver melhor.

“Os que estão tomando sorvete…?”.

“Isso”

Ele riu. Ela sempre fazia isso. As coisas eram mais claras naquela cabecinha e pensava estar claro para os outros. Incompletudes tão dela.

“Você poderia ter dito desde o início… olha aqueles dois tomando sorvete…”

Ela fingiu não notar o tom de galhofa. Continuou observando os dois.

“Não lembro bem o gosto de sorvete”

Ele disse e ela ficou calada. Também tentava lembrar.

“Sei que era bom. Tomávamos sorvete aos domingos depois da missa.”

“Eu morango, você pistache”

Ela lembrou de supetão. Normalmente acontecia assim: as memórias demoravam um pouco, mas chegavam como um pacote dos correios. Nem todas chegavam. Dessa vez, o gosto do sorvete de morango inundou onde seriam suas papilas gustativas.

“Ninguém prefere sorvete de morango”.

Ele gostava de implicar. Ela parou de observar o casal e o confrontou:

“E por que sempre tem sorvete de morango em qualquer sorveteria?”

“Porque algumas pessoas não sabem decidir. E escolhem o mais óbvio. Morango é a fuga dos indecisos”

As sobrancelhas dela perguntaram, Ah é mesmo?, e as dele responderam, Claro que sim.

Ela levantou e começou a caminhar devagar em direção ao casal. A cada passo sentia voltar ao passado. Ele a acompanhou e falou:

“Eles tem a idade de quando nos conhecemos”

“Toda a vida pela frente”.

Uns 17 anos. Ambos de jeans, camisetas simples. Ele ainda com acne no rosto, ela já com jeito de quase mulher apesar de ser apenas uma menina crescida. Tomavam o sorvete e faziam graça, chamegos, beijavam-se. Os dois ao chegarem perto deles, pararam. Era como se ver.

“Seu pai me odiava”

“Todo pai odeia o namorado da filha”

Ela quis amenizar, apesar de saber que era verdade.

“Primeiro namorado”

Ele falou orgulhoso, como se ela tivesse sido uma ilha desconhecida, e descoberta e desbravada por ele.

“Único namorado”.

Ela corrigiu, como se ele tivesse sido um déspota que tomou a ilha só para si e fechado para visitação.

“Você também foi minha única namorada”

Ele quis minimizar. Tentava mostrar o lado bom da ditadura na ilha que ela se tornou após ele. A exclusividade.

Ela não respondeu.

“Claro que foi”

“O perdão não faz as coisas sumirem, meu caro”

Ela sabia, apesar de nunca falar sobre.

“Que outra namorada eu tive?”

Ele fingia não ter acontecido por ela nunca ter falado sobre.

“O perdão só renomeia os sentimentos para gente se fingir de cego e seguir”.

Ela falou e ele calou. Teve que se calar.

O casal na frente deles continuavam sendo um casal. Eram jovens demais para cansar de ser um casal. Por enquanto.

“Você acha que eles estão apaixonados?”

Ele perguntou.

“Estão. Consegue ver aquela região de calor ali nela?”

Ela tinha certeza quase sempre.

“Nela sim”

“Nele também tem um pouco. Não seja chato”

“Um pouco sim. E tem um cheiro…”

“Isso. também senti. Acho que oxitona..”

“Dopamina”

“… e serotonina. Sim. Senti no final”

“Estão apaixonados, sim”

Ele confirmou a certeza dela.

 “Claro que estão”

Ela ficou feliz por ele ter confirmado a certeza dela. Então o convocou:

“Vamos chegar perto deles?”

“Eu derrubo o sorvete dele e você o dela”.

“Combinado”

 

*

“Quem você acha que ela está esperando?”

Ela falou. Dessa vez estavam num restaurante quase vazio. Eram três da tarde. Nem almoço, nem jantar. Um horário de quase ou coisa alguma. Sentados a algumas mesas de distância da moça sentada sozinha no centro do restaurante. Querendo ser encontrada.

 “Por que você acha que ela está esperando alguém?”

Ele gostava de responder com perguntas.

“Depois de todo esse tempo você ainda não percebe esses mínimos sinais”

“Você sempre teve esse pendor para tentar decifrar as pessoas. Mas nem do próprio nome lembra”

“Nem você consegue lembrar do meu nome. E, meu caro, eu seria uma ótima psicóloga”

“Todo paranoico pensa que seria bom psicólogo”

Ela não ia entrar nesse jogo de farpas. Estava realmente interessada na moça.

“Preste atenção nos olhos dela. Não estão perdidos no horizonte, estão ansiosos. Procurando. Esperando algo”

“Alguém”

Ele começou a se interessar também.

“Não é o primeiro encontro. Ela não está com roupa sedutora, e nem está sorrindo”

Ela analisava e tirava conclusões enquanto olhava. Não era uma análise pronta. Parecia uma detetive analisando um corpo recém encontrado numa cena de crime.

 “Por que estaria sorrindo se fosse primeiro encontro?”

Ela demorou milésimos de segundos para achar a resposta. Estava na ponta de sua língua.

“Por que nos primeiros encontros a gente prepara uma cara para ser a primeira cara vista. Queremos que o outro ao chegar nos veja da melhor forma. Então esperamos sorrindo para desde longe ele tenha uma boa impressão”

“Burlar o amor à primeira vista”

Ela ri. Olha para ele tentando identificar nos olhos dele o momento em que se apaixonaram. Mesmo há tanto tempo ainda deve ter registro desse momento, se houve. Houve? Se houve, provavelmente na retina deveria ter restado alguma cicatriz como prova. Antes que ela encontre, ele desvia o olhar e volta à moça.

“Vamos lá?”

Se aproximam de onde ela está sentada, e sentam-se nas cadeiras em frente. Não mais apenas os olhos dela procuram a chegada de alguém, a cabeça tenta ajudar girando em todas direções aumentando o campo de visão. As mãos se inquietam sobre o colo. O vestido leve amarelo parece mais pesado que minutos atrás.

“Você lembra do nosso primeiro encontro?”

Ele que pergunta.

“Não. Engraçado. de algumas coisas não consigo me lembrar mais”

“Normal. Faz muito tempo”

Ele tenta minimizar para ela não se sentir culpada. Ela não se sente culpada.

“Você lembra?”

 “Lembro. Não foi bem um encontro. Já nos conhecíamos. Não tinha o que fingir.”

Mais uma vez as memórias chegaram aos neurônios dela num pacote expresso.

“Sim. Lembrei uma vez você dizendo que temos várias versões de nós mesmos. Mas a melhor é a que alguém se fantasia no primeiro encontro”

“Isso. No primeiro encontro a pessoa é cuidadosa com as palavras, atenta a cada mexer de mão”

 “Nunca conheci sua melhor versão, então.”

Ela falou de supetão.

“Não seja má”

Ela não queria ser má.

“Não, quis dizer, de acordo com essa sua teoria, já nos conhecíamos no nosso primeiro encontro, estudávamos juntos, não havia espaço para personagens. Nunca conheci sua melhor versão”

Ela não era má.

Ele não soube o que responder. Talvez ela estivesse certa. Queria que ela estivesse errada.

“Ela parou de procurar”

Ela que notou no mesmo instante.

“Talvez seja só um amigo atrasado”

Ele era otimista.

“Ele não vem”

Ela era realista.

“Você sempre com suas certezas…”

“Os olhos. Ela não espera mais.”

Ele viu, e viu que era verdade.

“Ela caiu num abismo”

Ele ouvia calado, por estar calado ela procura a resposta nele mas o encontra no abismo.

 

*

Banana prata por apenas cinquenta centavos a unidade. Aproveitem.

“Você amava vir ao supermercado”

Ela falou enquanto conferia de perto o preço das azeitonas. Mais caro que semana passada. Passeavam pelos corredores de um supermercado que só funcionava nas madrugadas. Madrugada e supermercado era uma conjunção de fatores que atrai as pessoas mais interessantes do mundo, ele costumava dizer.

“Amo ainda”

“Sim, mas não podemos comprar nada”

Ela apontou para o azeite fazendo careta. Estava mais caro também. Depois iria procurar um jornal e saber se a inflação estava voltando.

“Ah, mas o que eu mais gostava não era comprar. Mesmo se fosse dois produtos passava horas… passeando pelas prateleiras. Ouvindo música”

Ele balançou o corpo, numa dança singela, e fechou os olhos se transportando para outra época.

Colaboradora Karina, por favor, se encaminhar ao caixa 07. Colaboradora Karina…

“Sim. Acho que era um estado meditativo seu”

“É ainda”

Ele continuou de olhos fechados, dançando no meio do corredor de bebidas alcoólicas. Vazio. Provavelmente não era um dia de pessoas interessantes fora de casa.

“Lembro que brigamos porque eu era mais prática. Você queria ler embalagem de cada produto”

“Sódio, gordura, porcentagens. Parecia mantra”

O vazio foi cortado por um casal surgindo no corredor. O carrinho ainda sem itens. Não parecem ter pressa.

“Um casal ali. Fazemos algo?”

Ele para a dança e abre os olhos. Vê o casal mas não se interessa. A mente ainda no passado.

“Será?”

“Quer que eu vá só? Você pode lembrar dos tempos que vinha ao mercado só”

Ele sorri:

“Obrigado”,

e volta a sua dança cercado de garrafas de vinho.

Ela se afasta dele e cerca o casal.

São dois homens de meia idade com um cachorrinho dentro do carrinho do supermercado. Em frente à prateleira de massas discutem sobre o que levar. Um prefere massa fresca. O outro diz que sempre sobra e acabam jogando fora, então melhor seria levar o macarrão normal. Duro e seco como ele, ele fala depois dela cochichar no ouvido. Após a tarefa cumprida ela volta.

“Eles estão brigando?”

Ele pergunta assim que ela se reaproxima.

“Sim”

Ela confirma satisfeita. Adora cumprir seu papel.

“O que você disse?”

“Bobagem. Sempre brigam por bobagem”

Ele desistiu totalmente de dançar e fechar os olhos. Não gosta que ela faça isso, especialmente no seu templo.

“Você podia ter dito algo bonito. Não sei porque você gosta tanto de criar essas intrigas”

“Tenho certeza que faziam o mesmo com a gente”

Ela fala sem certeza apesar de dizer ter certeza.

“Você brigava porque era assim. Não acho que precisava de ninguém suspirando no seu ouvido”

Ele fala com certeza apesar de dizer que acha.

Ele vai em direção ao casal e cochicha no ouvido de um.  O um fala, o outro sorri. Os dois sorriem e pegam a massa fresca.

“O que você falou para eles?”

Ela pergunta séria, sem gostar do papel de vilã. Não era vilã. Não era má. Só estava amarga.

“Bobagens”

Ele responde e ela segue. Olha os produtos. Compara os preços. As coisas estão mais caras. O corredor mais uma vez vazio.

Compre dois quilos de picanha e concorra a um belo faqueiro

Ela segue e o espera fora do supermercado. No horizonte o sol dá sinais de despontar. Poucos carros passam. Quando ele sai e a encontra, o casal está saindo do estacionamento. Acenam para eles, mas os dois homens não devolvem o aceno. Seguem sorrindo.

“Engraçado que você sempre foi apaziguador. Mas com os outros. Comigo sempre sobraram farpas”

“Você que lembra das farpas. Gosta de lembrar o pior das coisas”

O primeiro raio de sol toca o rosto dela. O dele dois segundos depois.

“Você acha que na nossa época tinha alguns de nós cochichando no nosso ouvido?”

“Não sei. Nunca vimos outros de nós. Talvez sejamos só nós. Sei lá”

Começam a se afastar do supermercado. Vão andando em meio a rua vazia.

“Prefiro assim”

“Prefere o que assim?”

“Que sejamos só nós”

“Por quê?”

“Para não ter sido injusto com você”

 

*

“Ah, como eu odeio isso”

Ela estava realmente irritada.

“O quê?”

Ele perguntou mas sabia o porquê.

“Ela não é a esposa”

“Claro que é”

Os dois num canto de um quarto observavam o casal. Era um apartamento simples mas aconchegante. A mulher que morava ali era jovem e tinha bom gosto. Poucos móveis, cores sóbrias. Luzes em lugares estratégicos para não mostrar mais do que o necessário. No quarto, um colchão diretamente no chão. Não por falta de dinheiro para comprar uma cama. Por opção. Um ventilador de teto girava devagar, tentando desapressá-los.

Em cima do colchão, ela já nua tirou a roupa dele. Primeiro os sapatos, depois a calça e depois de chupar por uns minutos o pau, tentou tirar a camisa. Ele riu pela dificuldade em se desvencilhar dos botões e a ajudou. Completamente nu, deitou sobre ela.

“Parece sua barriguinha”

“Ah, ele está bem melhor que eu nessa idade”

“Quantos anos você acha que ele tem? 50?”

“46”

Ela riu por ele ser tão específico. Normalmente não era tão específico.

“E ela tem 35”

“E não é a esposa”

“De novo isso…”

Ela lembrou que estava irritada. Ele não se importava com esse tipo de coisa. O tipo de coisa que a enojava.

“Sinais. Você não vê os sinais”

A mulher agora estava por cima do homem. Ele segura os seios dela enquanto ela se mexe vagarosamente com cuidado para ele não gozar logo. Se demorasse a gozar passaria mais tempo com ela naquele apartamento.

Ela saiu do canto do quarto e ele a observou. Ela ia fazer alguma coisa. Odiava quando ela começava a se irritar e perdia o controle.

“Você que quis entrar nesse apartamento.”

Ela não ouvia mais. A raiva tomando conta de suas veias inexistentes. Começava a ocupar todos os cantos do quarto como se fosse uma apresentadora de um programa policial.

“Não tem fotos dos dois”

Apontava para paredes e móveis.

“Temos todos os outros apartamentos para entrar, se você preferir”

“Ele guardou a aliança antes de entrar pela porta”

Em cada canto uma nova evidência

“E se ela amar ele de verdade?”

“Não importa”

Provas do crime a cada passo. O homem naquele colchão era culpado. A mulher de quatro com ele era co-autora.

“Claro que importa”

Ela não responde mais. Está decidindo o que fazer

“Você não conhece a esposa dele. Caso ele tenha mesmo”

O sorrisinho no rosto mostra que achou o que queria. Já sabe o que fazer. Derruba um copo de vidro no chão.

“Ela pode ser uma megera”

Ele tenta dissuadi-la mesmo sabendo ser uma tarefa impossível. Segue atrás dela falando e falando e ela continua procurando mais algo para derrubar.

Na sala, derruba um quadro no chão que se espatifa fazendo um grande estrondo.

O casal sai nu do quarto, procurando o motivo para os barulhos. A mulher fecha a janela. Deve ter sido o vento. O homem aproveita ela de costas, a inclina, e a penetra de uma vez.

“Ele pode amar a esposa, mesmo traindo”

A frase dita por ele faz ela parar. Era uma frase típica dele. Era algo típico dele. Algo que ele faria. Aquele homem comendo a mulher na janela era ele. Ela não era a mulher inclinada na janela sendo penetrada.

“O amor é…”

Ela não espera ele completar a frase. Não quer mais ouvi-lo. É hora de ir embora.

 

*

Ele está sentado em cima de uma lápide. De cima tem uma visão panorâmica de todo o cemitério. É um dia nublado e frio. Triste. Estar sozinho numa lápide de cemitério num dia nublado e frio, é triste. Ele sorri. Ela surgiu e ele sorri. Ele aponta o lado dele para ela sentar.

“Começou há muito tempo?”

“Não, não. O padre ainda vai falar”

Embaixo deles um grupo de umas vinte pessoas se reúne em silêncio. Os poucos que choram o fazem de forma discreta. A maioria veste preto e usa guarda-chuvas apesar de não chover. É como se chovesse.

“Odeio padres”

“Também”

Suas mãos se encontram ao mesmo tempo e se apertam. O odiar algo em comum também é prova de amor. O padre fala coisas que eles não conseguem entender por causa da distância e do vento. Melhor assim.

“Sabe quem morreu?”

“Parece que foi o pai daqueles três”

“Não tem viúva?”

Ela pergunta e ele procura um pouco entre os rostos a resposta. Gosta dessa brincadeira de adivinhação que ela faz tão bem.

“Ele era o viúvo”

“Entendi. Por isso que você está esperando”

Ele confirma com a cabeça. Sim, ao notar o enterro no cemitério resolveu esperar. Quem sabe dessa vez…

Olham para as pessoas, para o céu cada vez mais escuro e pesado, para o cemitério vazio, procuram palavras, acham silêncios, procuram palavras novamente. Até que ele encontra.

“Você tentou ir mais longe dessa vez?”

“Sim. Como faço em todas vezes”

“Nada diferente?”

“Nada. Sempre indo para mais longe, direção oposta a você mas sempre te encontrava. Daí ficava escondida para que não me visse”

Um dos filhos começa a falar. Outro, um mais novo, está abraçado à irmã mais velha. Apenas um dos irmãos se mantém alheio a tudo. Por um segundo pareceu vê-los. Mas ninguém pode vê-los.

“Me viu hoje pela manhã?”

“Na cafeteria”

“Isso”

Ele fica feliz por ter sido observado.

“Vi que você fez um casal brigar”

“Sabia que se você estivesse por perto ia sorrir”

Ela fica feliz por ele conhecê-la tão bem.

Se dão conta de que as mãos ainda estão juntas. Por notar, deveriam soltá-las? Depois de tantos anos não saber como agir, onde colocar as mãos, onde encaixar as palavras.

“Os filhos não estão tristes”

“Talvez não tenha sido um bom pai”

“Nenhum pai ou mãe é bom. A gente ama por convenção”

“Os meus eram”

Ao discordar, ela soltou a mão dele. Estava de volta. Estavam de volta.

“Sua mãe principalmente era uma peste”

Ele fala rindo esperando que ela ria junto mas ela não ri. Ele para de rir mas ela ri por dentro.

“Engraçado esse espaço”

Ele procura ao redor alguma graça. Tudo é cinza.

“O cemitério?”

“Não, não. Esse lugar que vivemos agora”

“Sim. Mesmo se não quisermos ficaremos juntos”

“Um ímã”

“Ou jaula”

Abaixo deles, as pessoas começam a se dispersar. Guarda-chuvas em procissão para fora do cemitério.

“É está acabando e ela não apareceu”

“Ele também não”

Eles também começam a sair. Ele ajuda ela a descer da lápide.

“Talvez não seja nesse momento que aconteça…”

“Talvez. Mas qual seria?”

Ele para tentando lembrar. Parado pode achar mais fácil a memória.

“Não sei. Eu não lembro quando aconteceu”

“Nem eu”

“Só lembro que você estava comigo”

“Sim”

Ele aproxima o corpo do dela, e caminhando, ela encosta a cabeça no ombro dele. Em frente ao portão do cemitério veem a horda de guarda-chuvas pretos se afastar. Um novo grupo se aproxima com um novo caixão.

“E talvez sejamos só nós”

“Talvez”

Ele faz sinal de voltar para o cemitério. Um novo caixão… quem sabe dessa vez alguém apareça. Faz que sim, mas antes de entrar novamente ela diz:

“Você nunca desapareceu”

“Nem você”

“Não. Digo, você nunca quis sair por aí tentando desaparecer. Me deixar só vagando, assustando sozinha casais.”

“Sim. entendi. Nem você. Você nunca quis desaparecer”

 

*

“Tão bonito quando neva”

“Sim, esses flocos caindo. Prestes a se desmanchar”

“Pena não sentir mais frio. Eu gostava do frio”

“Mas você  já sente  tanto…”

 

*

“Não sei porque você me traz nesses lugares”

“Sei que você gosta”

Ela gostava. Dessa vez não iria reclamar. O casal que transava em frente a eles era casado. Os filhos estavam na escola e agora eles aproveitavam para apimentar a relação. Assistiam sentados em cadeiras em frente a cama como se fosse uma sala de cinema 3D.

“Se estivesse viva, não. Você sabe que nunca fui voyeur

Era mentira.

“Você nunca gostou muito de sexo, na verdade”

Era verdade.

“Ela se submete demais. Olha só”

“Ela está de quatro. Só isso”

“Acho humilhante”

“Você só gostava de frango assado”

“De lado também”

“Sim, de lado era gostoso”

Na cama a frente a mulher fazia pouco barulho. Não conseguiam decifrar se estava entediada ou realmente concentrada.

“Gosto de posições em que posso beijar”

“Gostava”

“Sim, gostava”

Às vezes esquecia que estava morta.

“Pronto, ele colocou ela de bruços agora. Você vai odiá-lo mais ainda”

Agora o homem dava estocadas mais fortes. Parecia pedir que a mulher gemesse, ou provasse que estava viva a cada bombada mais enérgica. Havia uma certa urgência. Era quase meio dia e as crianças em poucos minutos deviam estar chegando.

“Ele não beijou ela ainda em nenhum momento”

“Eles são casados…”

Ela teve que olhar para ele para ter certeza que saiu daquela boca tamanha bobagem.

“Por isso não precisa beijar mais?”

“Tem que ser um pouco mais sujo depois de um tempo”

Ela suspirou. Seria surpreendente se não fosse nenhuma surpresa. Voltou a se concentrar no casal. Ela soltou um gemido, estava começando a acordar. Talvez tivesse lembrado das crianças.

“Sim. Você sempre teve uma queda por umas umas imundícies”

“E você sempre rejeitou”

“E agora aqui estamos assistindo sexo de desconhecidos”

Dessa vez ele riu e ela riu junto. Gostava quando não precisava assustar casais por aí e apenas os observava. Lembrar de quando era um casal, se bem que ainda eram um casal. Mesmo que de forma incompleta.

“Devíamos tentar algum dia desses também”

Ela deu um cutucão nele. Falou:

“ Já tentamos. Você sabe que não funciona aqui”

“Podemos tentar mais uma vez qualquer dia desses”

“Sim. Se conseguir até faço alguma posição nova”

Os dois se olharam. Eram um casal apesar de não poder ser totalmente um casal. Antes que se beijassem algo na cama chamou a atenção. Ele foi o primeiro a ver.

“Não!”

“Não?”

“Melhor não olhar agora”

“Tira essas mãos dos meus olhos”

Ele tirou.

“Você que mandou”

Sim, ela que pediu.

“Não”

“Pois é”

“Sério que ela está fazendo isso em cima dele. Ela parecia tão…”

“Eu avisei”

“Que mer/

 

*

“Qual o meu nome?”

“Gostaria de lembrar”

“Se eu soubesse te contaria”

 

*

“Você disse o que para ele?”

Ele perguntou assim que ela voltou sorridente. Cara de criança que acaba de aprontar.

“Nada. Só assoprei no ouvido”

“Ele sentiu?”

“Se arrepiou”

Dessa vez estavam num escritório de advocacia. Era verão, o calor tomava conta das salas, o ar-condicionado estava no conserto, mas todos usam ternos e roupas formais. A formalidade é tão cínica que finge desconhecer o calor.

“Por que ele olha tanto para ela?”

“Você me pergunta já sabendo a resposta”

“Claro que não”

Sim, ele sabia.

“Daí eu respondo ‘porque ele é apaixonado por ela’ e você replica ‘você adora analisar os outros”

“E você acaba de me analisar”

Pararam a briga de mentira quando a ponta de um triângulo chegou.

“Olha. Outro cara se aproximou”

“E ela gosta dele. Sorriu”

Ele analisou antes que ela. Touché.

“Você está aprendendo aos poucos”

“Aos poucos não. Fazemos isso há algumas décadas já”

No relógio da seção marcava 17h. Daqui a pouco era fim do expediente.

“Nosso tempo é um tempo diferente”

Ele fez sinal para irem embora quando o homem observador quebrou sem querer o lápis que estava entre seus dedos. Tinham que ficar mais.

“E agora nosso amiguinho ficou nervoso”

“Ele realmente gosta dela”

“E ela gosta do outro”

“Esse ver sempre é torturante”

“Como assim?”

Ela explicou melhor:

“Ele está vendo os dois. Mas pouco sabe. Vê os dois conversando mas não sabem o que conversam. Pode ser uma banalidade. Mas na cabeça dele, ela está sendo pedida em casamento”

“Bem, acho que agora ficou bem claro. Ele acabou de colocar a mão na cintura dela”

“Ele vai explodir de ciúmes”

“Vou lá nele”

Ela puxa o braço dele antes de ir.

“Fazer o quê?”

“Alguma coisa. Tirar o foco dele”

Ele pega o lápis na mesa dele e derruba. Volta para onde ela está e observa a reação do apaixonado. Sem reação.

“Ele nem percebeu o lápis caindo”

“O caso é grave”

Ele pensa, pensa. Não sabe porque mas quer ajudar o magricela. Sente nele um carinho como se fosse um filho.

“Você poderia ir lá no casal e falar algo pra separá-los”.

“Não sei se a gente pode interferir assim”

“Nunca nos passaram regras nenhuma”

“Sim, eu sei. Mas só pregamos peça, damos sustos…”

“E se fizéssemos algo a mais. Tentar mudar a trajetória das coisas”

“Não é certo”

“Por quê? Num dia morremos, no outro estávamos aqui. Ninguém avisou. Sem explicação nenhuma. Ninguém disse o que temos que fazer”

“Você sempre se exaspera quando começa a falar nisso. Vai que eles se irritem…”

“Que eles? Não existem eles”

“Deve existir. A vida é cheia de mistérios”

Ele estava cheio dessa conversa. Ela não queria ajudar.

“Eu vou lá e vou separar esse casal”

“Boa sorte, sr. irritadinho”

Ele vai, para ao lado, fica um tempo quieto, ouvindo. Ela observa tentando descobrir qual o plano dele. Depois de uns minutos volta sorrindo sem nada ter feito.

“Essa foi sua super ação para separar o casal e ajudar o magricelo?”

“Ele é gay”

“O quê?”

“Eles não são um casal. Ele é gay. Estão conversando sobre o namorado dele”

“Coitado do outro. Ainda está ali… enfeitiçado”

“ Você estava certa”

“No quê?”

“Sobre o que se vê. O que se vê causa mais dor pelo que não se sabe”

 

*

“Você acha que tivemos filhos?”

“Eu acho que não”

“Também acho que não”

“É algo tão forte que não esqueceríamos, não é?”

“Talvez”

“Não lembrar do próprio nome, ok. Mas filhos?”

“Seria melhor não lembrar que tivemos”

“Sim. Íamos passar a vida toda procurando por ele”

“A vida?”

 

*

Ela lavou os cabelos, ensaboou-se e deixou a água quente escorrer pelo corpo. Rios fumegantes entre os vincos secos de sua pele. Em frente ao espelho, secou o cabelo, penteou, os fios que saíram na escova e jogou no lixo. Passou um creme para os olhos, outro para as rugas, outro para o pescoço, hidratante no corpo todo. Muitas rugas. Muitos anos. Escovou os dentes, passou enxaguante bucal sem álcool, tomou os comprimidos. Sorriu para o espelho que sorriu de volta.

Ao sair do banheiro, colocou a camisola que havia comprado no dia anterior, e desligou a luz. Era fim de tarde e logo a noite chegaria. Ele já estava deitado na cama. A luz laranja inundava o quarto, e pintava as extremidades do corpo velho dele. Assim que ela desligou a máquina que mantinha ele respirando, ele abriu os olhos.

Ela deitou ao lado dele na cama. Cobriu-se com o mesmo lençol. Tinha planejado ficar calada, afinal todos esses anos ele reclamava o quanto, o tanto, o muito que ela falava. Depois de alguns minutos encarando o teto, desistiu.

“Quando você acha que acabou?”

Ele demorou a responder. Ela pensou que não iria responder. Virou o rosto para ter certeza que ele ainda estava vivo, e o viu com os olhos também fixados no teto. Ela já havia fechado os olhos e desistido quando ouviu.

“Como assim?”

Reabriu os olhos e encontrou os dele olhando diretamente para os seus. O rosto dele também estava velho, cheio de rugas. Bonito como sempre foi.

“… teve um dia, um momento?”

Ela perguntou de pronto com medo de não ter a resposta antes que ele se fosse. Eles se fossem.

“Do que você está falando?”,

Nem no fim, ele deixava de ser ele. Fingia não entender para testá-la. Para ela repensar as próprias certezas. A respiração dele estava fraca. Não iria aguentar por mais tempo.

“Da gente. Eu e você. De quando tudo acabou”.

Ele esboçou um sorriso e a olhou com carinho. Voltou a virar o rosto para o teto e fechou os olhos. Era isso. Era hora de descansar. Ele fez o mesmo: fechou os olhos e virou o corpo para cima.

Sua mão um pouco trêmula sentiu quando a dele a encontrou por debaixo do lençol. Apertaram-se. Parou de tremer.

“Quem disse que acabou?”

“…”

“Ana?”


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Gael Rodrigues é paraibano de 33 anos. Seu romance ‘Terra Laranja’ venceu os Prêmios Literários da Fundação Cultural do Pará em 2017 e o juvenil ‘A menina que engoliu um céu estrelado’ ganhou o prêmio CEPE 2018 (além de ter sido finalista dos prêmios CEPE 2017 e  Barco a Vapor 2018).