|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Natália Zuccala
Somos todos iguais, este é pressuposto básico do nosso trabalho e o pilar de nossa atuação. A qualidade que mais prezamos em nossos colaboradores é não operar discriminações de nenhuma ordem entre os seres vivos, ou mortos. E quando dizemos que todos são iguais, nos referimos a todos mesmo: humanos e animais, adultos e crianças, idosos e jovens, homens e mulheres, brancos e negros, índios e asiáticos, hétero e homossexuais, gatos e lebres, pombas e ratos, cachorros e pássaros, até mesmo os pássaros!
Apesar do nosso target ser assim tão amplo, poderíamos dizer, acolhedor, por outro lado, a nossa atuação acaba circunscrita a um grupo um pouco mais específico, seleto, definido à revelia de nossas intenções universalizantes. Refiro-me a predominância de homens de pele escura em relação aos de pele clara, negros, ou pretos, como são chamados; o que não é um problema, afinal nós também somos pretos, ou negros. Além disso, também predominam os dogs de rua em relação ao pets de apartamento. Em nossos cases, aparecem mais crianças indígenas do que caucasianas. Seja como for, e isso é importante deixar bastante claro para os Senhores, essas predominâncias não são determinadas por nós, de jeito nenhum e muito contrário, mas por fatores externos e, muitas vezes, pelos nossos próprios clientes. Como temos o coração e o estômago abertos a todos, o que acaba definindo nossos targets são as conjunções socioculturais relativas ao nosso campo de atuação, isto é, nosso país, o Brazil. Quem sabe um dia, o mundo. Why not?
Tampouco fazemos muitas distinções relacionadas ao corpo, um coração é tão relevante quanto um fígado, pênis e lábios vaginais têm igual serventia, não trabalhamos com hierarquias e diferenciações de nenhuma ordem, tolerância é nosso mote. Tenho de confessar, no entanto, que damos certa preferência aos mais adiposos, em detrimento dos mais magros, mas neste caso, por vantagens evidentes.
Outro ponto forte do nosso trabalho é o sigilo absoluto acerca da identidade de nossos clientes. Posso garantir, entretanto, que temos na nossa hall of fame figuras importantíssimas do mercado financeiro e da política, lidamos com o mais alto escalão de instituições públicas e também privadas.
Encontrar-nos é muito simples, basta olhar para cima: nossa penugem preta reluz sob céu cinzento da cidade, temos uma cabeça enrugada e sem penas, como os Senhores podem ver, e estamos por toda parte.
Ah, antes que eu me esqueça, quando pensar em contratar outros serviços funerários mais requintados envolvendo ocultação dos corpos, incineração ou descarte fluvial, lembre-se dos danos ao meio ambiente que essas práticas implicam! As aves de rapina têm função imprescindível no meio ambiente, nosso diferencial é a necrofagia, a forma mais sustentável que existe de se livrar dos cadáveres em decomposição: roemos as carcaças, palitamos os dentes e ainda fazemos um favor to mother nature.
Não, não temos telefone, e-mail ou instagram, infelizmente, mas garanto que tampouco seria necessário, contratar-nos é mais fácil do que se imagina. Por termos olfato apuradíssimo, basta começar a feder para atrair-nos, deixe o corpo em qualquer vala pública ou mesmo em seu quintal e, por favor, afaste os familiares de perto, a insistência por sepultar os defuntos às vezes atrapalha nosso serviço. Se quiser que cheguemos com urgência, coloque um naco de carne podre exposto ao lado cadáver, podemos sentir a quilômetros de distância o cheiro da putrefação, ah, o odor fétido da morte é um bálsamo irresistível.
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Natália Zuccala é escritora, dramaturga e professora. Publicou seu primeiro livro, “Todo mundo quer ver o morto”, em 2017, pela editora Patuá e integra o grupo “Escritorxs de quinta”. Teve algumas de suas peças encenadas pelo coletivo “Antessala”, do qual fez parte de 2013 a 2017. Formou-se no curso de Letras na Universidade de São Paulo e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura na Escola da Vila.
VÍCIO VELHO 