|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Vera Saad
Talvez por ter entendido tardiamente que apenas conhece a saudade quem já perdeu alguém e talvez também por tê-la vivenciado ultimamente que uma frase tenha me perseguido nos últimos dias. Eu a li pela primeira vez em um conto da escritora Lilian Sais e a ouvi depois em um filme de Domingos de Oliveira. A frase em questão é: “De saudade também se morre”. Não apenas seu significado como também a sua forma têm me tirado o sono.
Sua beleza está em ambos: forma e conteúdo. Se trocarmos “de saudade também se morre” por “a saudade também mata”, sua força já não é a mesma, ainda que o significado se mantenha igual. Isso muito me intriga e me faz voltar a um dos meus estudos mais preciosos no doutorado: o sujeito na linguagem. E recorro aqui a uma análise de Winfried Siemeling.
Winfried Siemeling cita Benveniste, que, em Subjetividade na linguagem, define o ato móvel da constituição do self como o princípio da subjetividade. Sob a perspectiva de Benveniste, a subjetividade corresponde à “capacidade de o falante se postular como ‘sujeito’”. Segundo o autor, a concentração de Benveniste na subjetividade qual um fenômeno discursivo pontua a subjetividade como produzida sob diferentes aspectos e oferece um interessante foco no estudo textual.
Por outro lado, conforme ressalva, o Eu discursivo tende, por uma tradição cartesiana, a se sobrepor sobre o que não é sujeito. O autor ainda lança mão do exemplo “’Ego’ é ele que diz ‘ego’” (est ego qui dit ego), em que nota que não é o sujeito falante que produz o sujeito na fala.
A despeito de o Eu de Benveniste somente existir em contraposição a um TU (o que indica a pluralidade do sujeito), Winfried questiona a predominância do sujeito sobre o seu objeto ou complemento, assim como a concentração linguística do sujeito no discurso.
Como alternativa, o autor recorre a Husserl, citado por Kristeva, que pondera que “o ego como suporte do ato predicativo não opera como o ego cogito, melhor, toma forma dentro de uma operação predicativa.” Essa operação é tética, conforme Kristeva, pois situa a thesis tanto no objeto quanto no ego. Kristeva sugere que a thesis é acima de tudo aquela que produz o Eu, e não sobre o que o Eu produz.
Após analisar a operação tética, o autor recorre à heterologia a fim de estudar estratégias textuais que, além de colocarem em cheque a predominância do EU sobre seu complemento ou objeto, orientam-se para fora da operação tética.
O autor lembra que o termo heterologia está relacionado à noção de heterogeneidade e também se refere ao logos, ou seja, fala e pensamento. Todorov utiliza o termo heterologia em seu estudo sobre Bakhtin, para traduzir o termo heteroglossia, que se refere a uma “diversidade irredutível de tipos discursivos”. Todorov conclui em Literatura e seus Teóricos, que, mais do que arquitetônica, a obra literária é acima de tudo uma heterologia, uma pluralidade de vozes, um eco e uma antecipação dos discursos por vir. Para ele, ela é tanto uma encruzilhada quanto um ponto de encontro.
Posto isso, voltemos à frase: “De saudade também se morre”. O índice de indeterminação do sujeito “se” (se morre) torna o sujeito dessa oração indeterminado. O predicado, por conseguinte, ganha força e o sujeito, beleza por carregar muitos signos (pode ser “EU”, “TU”, “ELE”, “ELA” ou até mesmo a própria saudade). Se mudarmos a oração para “A saudade também mata” ou, ainda, para “eu também posso morrer de saudade”, de construído, o sujeito passa a ser o produtor de signos.
Na literatura, marcada pela heterogenia e polissemia, interessa-nos menos a concentração linguística do sujeito no discurso e mais tudo aquilo que o produz. Portanto, a força e a beleza da frase residem sobretudo em sua forma, que, no final, é também conteúdo.
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), Vera Saad é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.
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Referência bibliográfica
SIEMRLING, Winfried. Introduction. In: Discovery of the other: alterity in the Work of Leonard Cohen, Hubert Aquin, Michael Ondaatje, and Nicole Brossard. Toronto: University of Toronto Press, 1994.