A CASA VAZIA – MÁRCIA BARBIERI

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Márcia Barbieri

Eles tentaram sair sem fazer barulho, no entanto, o ferrolho estava emperrado, pedi a Estevão há anos para dar um jeito nos rangidos, ele respondia com um aceno positivo de cabeça e depois se esquecia da tarefa. Confesso que agora achava isso bom, talvez desistissem de partir…

Com algum esforço e para o meu terror eles conseguiram abrir a porta. Sim, eu sei, eu deveria tê-los impedido, mas não o fiz. Como poderia agir de forma diferente? Se eu os obrigasse a ficar não estaria sendo desleal e egoísta? Não estaria apenas tratando de camuflar a minha incapacidade de viver completamente só? Adiei tanto o tempo da solidão… Passamos tantos momentos juntos, vê-los partir assim, acabava comigo. Embora desde o início eu tinha plena consciência que nossas relações não eram eternas. No começo pouco me importava com eles, as coisas impermanentes têm certo esplendor e acabam tomando espaço em nossos corpos, primeiro na superfície insignificante da pele, depois tomam as vísceras.

Fiquei observando-os em silêncio, por detrás da janela empoeirada da casa, Flamenca deveria ter limpado as janelas antes de me abandonar, com certeza fez de propósito, para que eu sentisse ainda mais a sua falta. As flores do velório também continuavam em cima do balcão, embora já estivessem completamente murchas e sem função, já que não tinha mais um defunto para enfeitar. No ímpeto quase gritei que ao menos Mudinha ficasse, seria muito difícil viver lá fora, assim, sozinha, com ar de abobalhada e sem dominar a linguagem de sinais. Seria inútil gritar, ela não escutava. Vi o Homem sem Cabeça fazer um gesto compassivo com o chapéu coco, demonstrava um afeto que eu nunca tinha percebido, ele parecia não se importar com nada, no fundo, tinha um bom coração. Me arrependi um pouco por não tê-lo compreendido direito, fiz menção para que retornasse, eu poderia me dedicar mais, poderia dar mais alguns anos de vida a ele. Inútil, ele não queria, ele sabia que eu tinha feito o possível, mesmo que tenha sido tão pouco e os resultados tão medíocres. Que espécie de Deus, afinal, pode suprimir a dor dos seus filhos?

Sai de detrás da janela e atravessei a porta entreaberta, as roseiras precisavam ser podadas, quem faria o serviço agora? Estevão já estava longe e apesar de aparentar decência nem sequer olhou para trás, será que considerava que o passado poderia transformá-lo em uma estátua de sal?

Era triste ver Esther sendo carregada pelo marido e por todos os outros, juro que, durante alguns anos alimentei a esperança de que ela saísse daquele estado de morte e torpor. Não saiu. Estava completamente entregue aos do outro mundo. De longe ainda conseguia enxergar a sua beleza e a sua palidez. Ela balançava dentro do caixão, ele era maior do que seu corpo.

Já não podia fazer mais nada. Agora é sentar em frente ao computador e esperar que outros personagens me conduzam pelas mãos e me façam atravessar mais alguns anos e façam com que eu sinta que não estou irremediavelmente só…

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Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979.  Formou-se em Letras (Port-Francês) pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta (Terracota, 2014) e O enterro do lobo branco (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018. O romance A casa das aranhas será lançado no final do ano. Conto em homenagem aos personagens do romance A CASA DAS ARANHAS. Para saber mais clique no link: Pinot Noir Literatura