já era verão
o calor a agarrar os corpos
mas não o teu
amargunçaste no pasto morno do outono
a mugir ventos
ali estavas desde sempre e ficaste
— ainda bem
.
ainda bem que o rock rollou
e eu
eu vim de rebolo até aqui
na trilha dos van der graaf generator
como um despegado fio de vento revolto
talvez até revoltado
o amor é um lugar muito mal frequentado
às vezes
.
e às vezes a tradução literal é muito mais bela
.
as we shimmer into sleep
brilhar tanto que se atinge o sono
— sim
.
sabes, falar pode ser uma ótima forma de
falar — nem sempre a possível
.
distanciar-se pode ser uma péssima forma de
se distanciar — quase sempre a possível
.
it was too beautiful for it to last
.
o mundo ainda é tão solitário quanto antes
ainda me dedico à auscultação dos morros
e à contagem dos movimentos de inspiração-expiração do oceano
acontece que a estação já não é propícia à ardência de úlceras
muito menos à plantação de passados
o atavismo perdeu muitos fãs, sabes
as previsões astrológicas também
os corpos andam mais à solta
o rompimento dos tendões uma quase-pele
a própria terra tem se escancarado mais de vermelho
afinal era verão e assim tem permanecido
pelo menos por enquanto
mesmo que à socapa ande a nevar no leblon
ah mas isso tem passado por um detalhe excêntrico do equilibrista
o certo é que era verão e assim tem permanecido
between the dying rails of peace disse
daniel sem saber de nada
que é quando muitas vezes mais se diz
olha, eu ainda conheço os cantos ao bairro
sei onde as janelas abrem pra deixar as cortinas
saírem
sei onde o mar arfa mais agudo
sei por onde se esfrega o perfume de fumo e manjericão
sei perfeitamente que em algumas esquinas tudo
isto que estou praqui a dizer-te
ganha ares psicodélicos
mas ainda assim deixa-me
acreditar que era verão e que assim tem permanecido
.
lembro-me bem que
o amor é uma engenharia de criar tempo fora do calendário
e espaços onde nem sequer há casa
.
e eu
eu que ando que nem chego a tempo do tempo
que nem ocupo o espaço do espaço
ex-calo estrelas extintas
no vácuo que vai da palavra à coisa que se apalavra
sim, as estrelas foram abolidas
as nascituras também — arrancadas pelo umbigo
às ranhuras de deus
quem não espera não desespera
estamos livres de deus, do amor e da esperança
estamos livres do futuro
mas eu juro que está calor e a memória e a ansiedade coletivas
quase inexistem
o instante finalmente aparenta estar digno
a bebedar-se do intransferível suor dos corpos
e de outras derivações do espanto
.
pelo menos por enquanto
o grande rádio da cidade toca: afterwards
quem escolheu foi daniel sem saber de nada
que é quando muitas vezes melhor se escolhe
bem sei que de vez em quando há
interferências
um certo don solidon sussurrado noutra língua
acho que é russo mas só eu escuto
e confesso que sorrio — foda-se
e por isso é que ainda te escrevo
é que ainda ontem (apesar do calor) senti uma brisa vinda da fronteira
à beira da bomba de explosão azul
mas não, eu garanto aqui é muito verão e até a neblina é vermelha
o gerador de multidão está a rodar perfeitamente
a encher as ruas os bares os espelhos
onde antigamente só havíamos
nós
.
lembrar pode ser uma boa forma de esquecer
— muito provavelmente a possível
.
sim, sim, vê-se.
o verão pode ser um grande exercício de sintaxe (e síntese)
a work in progress
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* nota da poeta
[ao verso 87 do poema algures depois / oscilografia]
o verbo haver, ao existir, há que ser impessoal — diz a gramática do português. mas o que fazer ao sentir de um português que à matriz se embebeda de um haver ponto final. raro lugar em que o estar e o ser são um só: nós havíamos. nós, sujeitos do haver. nada objetos — protagonistas, nós acesos na consciência de haver. bem vistas as coisas, o nosso haver — pelas ruas da cidade, pelos espelhos da casa — foi o que de mais pessoal pôde haver.
problemas existenciais à parte, porque existir é difícil até para as palavras, pensemos no amor a fintar os casamentos, no tempo a baralhar os ponteiros dos que viajam, que é como a língua está para a gramática. então, com uma vênia ao juiz, fique aqui esta excepção. e bem hajam.
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calí boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou Língua e Literatura Romena e Tradução Literária. No virar de 2009 para 2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, dez.2018], é um relato poético do exílio e da clandestinidade, e tem posfácio de João Almino e desenhos de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. [caliboreaz | instagram]