O ronco do triciclo rasga a madrugada do bairro do Gradim, em São Gonçalo, inibindo o som do meu toca discos que − vexado em incomodar os vizinhos do sobrado muquifo em que moro − toca o álbum Highway to Hell do AC/DC, minha banda preferida.
O motor ruidoso vai morrendo debaixo da minha janela dando paz novamente à madrugada e o som da guitarra esfuziante de Angus Young volta a preencher ainda tímido o ambiente.
Já estou ciente do meu destino.
Sussurro o seu nome, sem forças, entregue ao desânimo:
− Cilene, Cilene… Assim eu não aguento!
Não se passaram três horas que eu fiz uma baita festinha com a docinha Lucinda, o que atrasou o meu trabalho. Mineirinha linda, cheia de “uais” e gemidinhos provocantes. Lucinda tem o dom de me hipnotizar com o seu olhar meiguinho de caboclinha. Ah, e quando cisma de morder a ponta do mindinho enquanto cavalga como uma amazona em fuga, me leva à dimensões paralelas. Depois dessa empreitada, já não me restava mais nada, a não ser terminar de elaborar a prova de geografia que tenho que aplicar para os meus alunos do quinto ano, amanhã, às nove.
Mas eu sei, com Cilene não vai ter jeito.
A prova vai babar.
Com Cilene não há hora marcada. Não importa que sejam uma, duas, três ou quatro da manhã. Quando dá na telha dessa loira diaba, cinquentona, de 1,80m, despenca de onde estiver e corta a cidade com o seu triciclo sport vermelho, embalada em couro e botas de salto plataforma, para invadir a minha casa.
Lucinda me trouxe pãozinho de queijo, cachacinha de sua Montes Verdes e manteiguinha de garrafa que usamos também para certas libertinagens. Quando se foi, deixou no ar o seu perfume açucarado de menina do interior.
Já ouço o trotar da demônia no corredor. Seu caminhar rápido e pesado denuncia a sua ânsia incontrolável em busca do meu pobre pau.
Não demora muito e começam as pancadas na minha porta. Bate tão forte que estremece o vidro da janela da minha sala. Fico em silêncio para fingir não estar em casa, mas com certeza já ouviu o som de Walk All Over You com a maldita voz esganiçada de Bon Scott que me denuncia. As batidas não cessam. Grito desesperado:
− Meus Deus, soltaram o Kraken!
De onde estou, posso sentir o cheiro de incontáveis Luck Strikes e uma quantidade absurda de cerveja malzbier.
As batidas ficam cada vez mais fortes.
Com Cilene não tem jeito. É capaz de ficar batendo à porta o resto da noite e acordar toda a vizinhança. Nem quero pensar em ter que me explicar amanhã à minha senhoria, dona Emingarda, que tem o humor pior do que o de um orangotango.
Abandono o trabalho natimorto no computador e me levanto aturdido como um pobre camponês diante da invasão de um poderoso exército viking. Respiro fundo e aperto a cabeça do meu parceiro, dentro do meu short, o repreendendo num tom de quem já se decepcionou antes:
− Acorda, hein! Com ela não tem jeito. Vamos à luta! A hora é agora!
Abro a porta e sem qualquer aviso sou empurrado com violência pela gigante invasora. Voo através da sala como um peso morto me estabacando contra o chão. Como uma leoa faminta, Cilene me puxa contra as suas carnes flácidas e mete a sua língua na minha boca. Sinto como se estivesse beijando um cinzeiro e quando tento me afastar, a minha roupa é arrancada com voracidade e atirada aos quatro cantos. Cilene se levanta e se despe me fuzilando com um olhar castanho ameaçador. Tento rastejar de costas em fuga para o sofá, mas uma dor lancinante debaixo do meu braço esquerdo me paralisa e tento recuperar o fôlego. Sem me dar tempo de qualquer reação, a diaba se atira pesada sobre meu corpo franzino e começamos uma troca ensandecida de tapas.
Sou estapeado com tanta força que sinto arder o meu rosto, como se estivesse em chamas. Tento devolver a infâmia na mesma proporção, a danada sem importar-se, esfrega a boceta enlouquecida contra o meu abdômen até explodir em êxtase. Inclinando-se para trás, joga os cabelos dourados e lisos nas costas largas, respira relaxadamente e solta um risinho rouco de satisfação.
Mas a paz é breve.
A melodia de Beating Around the Bush toma conta do ambiente num trotar de bateria e guitarras alopradas.
A respiração de Cilene começa a se alterar, como uma locomotiva que vai ganhando velocidade sobre os trilhos. Tento recuar, mas ela é mais forte. Agarra-me entre as suas coxas roliças e sou surpreendido com um soco na cara. O golpe é tão forte que parece que o recebi de um pugilista profissional. Quase nocauteado − com gosto de sangue na boca −, sinto o meu membro ainda meia bomba, ser sugado para dentro de suas entranhas quentes e gelatinosas, e uma dança frenética se desenha ao som da música. Pele com pele, suor misturando-se a baba, cuspe, lanhos, mordidas, entra-e-sai frenético, urros e gemidos ensandecidos se consumam numa delícia dolorida e escalavradora.
Reúno todas as minhas forças e tento virar o jogo. Só o consigo porque ela permite. Ergo-a pelos cabelos virando-a de costas para mim e esfrego o seu rosto rosado com força contra a parede áspera da minha sala.
A música para e a vitrola desliga automaticamente quando termina o lado do disco. Permanece na sala apenas o som de nossa prazerosa luta.
Sorrindo e debochando da minha fraqueza, diante de sua força titânica, Cilene quebra o seu silêncio e se manifesta com urros animalescos:
− É assim! É assim! Assim que eu gosto! Assim que eu gosto! Saudade! Saudade! Seu puto! Seu putoooooooo…! Me xinga, seu filho-da-puta!
− Cala-a-boca-sua-vagabunda!
− Me xinga igual a um homem, seu viado!
− Sua piranha de meia idade!
− Isso, me arrasa! Me arraaaasa! Eu gosto!
− Sua puta motoqueira de merda!
− Sou! Sou! Eu gosto!
− Gosta por quê?
− É bom, é booommmm…!
− Sua vaca!
− Sim! Sim! Sim! Sou sua vaca!
− Muge!
− Muuuuuuuuuu!
− Muge mais alto!
− Muuuuuuuuuuuuuuuuu!
− MAIS ALTO, PORRA!
− MUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!!!
A loucura reina sobre nós. Mergulhamos na total insensatez e já não me importo com o que dona Emingarda irá reclamar amanhã. Cilene se debate, resiste à minha força, mas ao mesmo tempo implora humilhação. Nos estapeamos novamente e rolamos um sobre o outro em busca do encaixe perfeito. Penso que estou dominando o coito, mas a sua força ressurge como as chamas de uma fênix e me domina, frágil aos seus anseios vorazes. Sou submetido a uma cavalgada desesperada, até que a furiosa dama explode num outro gozo frenético e tomba inerme ao meu lado em total silêncio.
A sensação é de que o meu pau fora esfregado numa parede. Meu torso dói como se uma faca tivesse sido enfiada na minha lateral esquerda.
Cilene ainda caída estica o braço e retira de sua bolsa jogada ao chão um lenço e um vidro pequeno de leite de rosas. Suntuosamente, embebeda o lenço com o leite de rosas e com uma das mãos, de forma muito cuidadosa, levanta o meu amigo exausto e começa a limpeza. Cuidadosamente passa o lenço úmido pelo meu períneo, minha virilha, saco, prepúcio, glande, numa candura quase maternal. Com Cilene não tem jeito, ela faz o que quer.
Sinto o frescor do álcool em contato com a minha pele e puxo o ar entre os dentes com um pouco de aflição. Cilene não dá a mínima para a minha reclamação. Continua até deixar tudo do jeito que gosta.
Uma mulher diferente da que invadiu o meu quarto, começa a fazer um sexo oral suave, terno e envolvente, trazendo vida ao morto que, dolorido e humilhado, ao ser acarinhado voluptuosamente por sua língua faceira, sente-se na necessidade de erguer-se do túmulo. É a minha vez de explodir num gozo ralo e insólito. Minha uretra arde e fico estatelado no chão, quase desmaiado. A invasora veste lentamente as suas roupas de motociclista sem proferir uma palavra. Ao terminar, me dá uma piscadela e sai fechando a porta.
Não ouço o seus passos nem no corredor, nem na escada. É realmente outra Cilene. O ronco do triciclo anuncia a sua partida. Aquele som trovejante vai sumindo aos poucos dentro da longa e escura noite.
Com o corpo mais relaxado, a dor na lateral esquerda do meu tronco aumenta, de tal modo, que oprime o ar de entrar suave em meus pulmões. Arrasto-me com dificuldade para o quarto. Sobre a minha mesa, vejo o laptop apagado. O despertador no criado-mudo marca quatro horas da manhã. Os alunos não vão ter prova.
Tento me levantar, e me vem novamente à sensação da facada.
− Meu Deus! Acho que quebrei uma costela!
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Romulo Narducci (@romulo_narducci) é poeta, escritor, compositor e guitarrista da banda de rock Mangusto. Um dos idealizadores do evento Uma Noite na Taverna, realizado em São Gonçalo de 2004 a 2016. É autor dos livros de poesia “Orações Licenciosas (Ou Cancioneiro Erótico)” (2008) e “Tudo Que Morre é Consumado” (2010) e do livro de contos “Angustiolândia (Ou de Bares, ruas e bordéis)” (2015), além de ter participado de diversas coletâneas de contos e poesia.