BREU POVOADO – OSCAR NESTAREZ

“Perguntar por que existe feitiçaria no Haiti
é perguntar por que existe mal no mundo.”
Wade Davis, A serpente e o arco-íris

São incertas as minhas impressões de quando cheguei a Porto Príncipe. Por mais que quisesse reter o momento, ingeri uma pílula fortíssima para dormir durante o voo de São Paulo ao Panamá, e o restante da viagem transcorreu como se fosse um sonho. Como se, destacados de meu corpo, meus sentidos flanassem ao redor dele, tenuamente acesos, mas sem jamais apreender o todo ao redor.

A conexão no aeroporto de Tocumen, na Cidade do Panamá, seria bastante breve, de forma que senti como se flutuasse ao redor do meu corpo enquanto corria na direção do portão de embarque. Felizmente, o voo estava no horário. Parado em frente à entrada do finger, tentei acessar alguma rede para comunicar Louise, esposa de Rubens, que tudo dera certo e que, dali a cerca de duas horas, eu aterrissaria no Haiti. Mas uma funcionária da companhia aérea pediu-me para embarcar sem demora. Guardei o aparelho no bolso, sem enviar a mensagem, e fui.

Posso não me lembrar de todos os detalhes do desembarque, mas não me esquecerei da descida sobre a capital haitiana. Baixávamos lentamente na direção de uma monumental tapeçaria de concreto e alvenaria, uma trama de pequenas construções apinhadas, blocos e mais blocos delimitados por minúsculas vielas que se perdiam em novos quadrantes. Quase não havia clareiras entre as poucas avenidas que observei. Ao fundo, adivinhei as montanhas que dão nome ao país — Ayiti, “terra de altas montanhas”, como os indígenas pré-colombianos Taínos chamavam o local.

Atrás de mim, sentavam-se dois rapazes negros. A julgar pelo créole que falavam — esta curiosa mistura entre francês e dialetos africanos, cheia de metaplasmos –, intuí serem haitianos. Durante a aproximação, um deles começou a cantar. A melodia era incompreensível, estranha, vagarosa; e a voz era grave. Conforme descíamos, foi tornando-se aguda, até chegar a quase que um filete, apenas. Comunicava não exatamente tristeza, mas uma força acuada. Aquele vozeirão parecia retrair-se diante de algo muito mais poderoso.

De minha parte, os sentidos subitamente convocados de volta ao corpo, acuei-me também. Afinal, estava aproximando-me da terra que, de certa forma, mantinha vivo o vodu, essa mistura de crenças e ritos que praticamente fora erradicada de sua matriz, a África. Como sempre fui curioso em relação a expressões culturais primitivas, o vodu me interessava muito — assim como as instigantes histórias que ligam-se a tal prática, com seus rituais avassaladores, zumbificações, possessões por loas — ou espíritos –, sacrifícios, entre outras. Antes de minha viagem, procurei ler algo sobre o assunto para me familiarizar com termos e práticas — mas tive a impressão de que sequer toquei a superfície do tema.

Após aterrissar, encontrei Louise logo na saída da imigração, pela qual passei sem maiores problemas. Minha expressão aturdida deve tê-la surpreendido, pois antes mesmo de nos abraçarmos ela me perguntou se eu estava bem. Assegurei-a de que que sim, só estava zonzo por conta dos calmantes.

Procurei manter-me desperto durante o trajeto do aeroporto, no centro da capital, até Pétion Ville, comuna onde Louise e Rubens moravam. De imediato, marcou-me a multidão circulando sem rumo pelas ruas: impossível não evocar as inúmeras lendas de mortos-vivos sobre as quais li, sempre tão vinculadas a essa terra. A memória já bastou para jogar, na luz dura do sol a pino, algumas sombras interessantes.

Chamaram-me a atenção também os mercados improvisados e os tap taps — caminhonetes coloridas e caindo aos pedaços em cujas caçambas as pessoas se atulham. “São o único meio de transporte urbano daqui,” contou-me Louise. Seguíamos em um 4×4 blindado conduzido por Elgree, um simpático motorista haitiano a serviço da embaixada brasileira, órgão ao qual o veículo pertencia.

Rubens, meu amigo de infância, era diplomata e servia no Haiti havia pouco mais de meio ano. Porto Príncipe era seu segundo destino. Antes, passara três anos em Paris, um posto “A” na classificação do Itamaraty e, por isso, evidentemente muito requisitado entre seus colegas. Ele fora à capital haitiana (nível “D”) para consolidar seu futuro: ao aceitar um trabalho considerado difícil, teve garantida sua próxima remoção para Tóquio, três anos depois.

A ida para o Haiti teve também outra motivação: Louise. Ela era haitiana de nascimento, mas naturalizara-se francesa. Ambos conheceram-se em Paris havia cinco anos e, embora a esposa jamais tivesse expressado vontade de voltar ao país de origem, Rubens avaliou que a proximidade da família faria bem a ela. Ao ouvir essa ideia, Louise concordou com a mansidão de costume, parecendo reservar para si o que realmente pensava a respeito.

Após percorrer ladeiras cada vez mais estreitas e íngremes — Pétion Ville está no caminho para as montanhas –, o 4×4 parou em frente ao que parecia ser uma fortaleza: muros de cinco metros de altura ladeando um gigantesco e maciço portão de ferro, que lentamente abriu-se após alguns toques na buzina. Empurrava-o um rapaz cuja mão livre cerrava-se sobre o cano de uma escopeta. “Segurança particular,” explicou Louise, em seu português charmosamente arranhado, mas quase perfeito, ao perceber meu espanto.

O edifício consistia em dois blocos com cinco apartamentos cada. O casal ocupava um deles — espaço amplo e arejado, banhado pela luz tropical graças à fachada toda envidraçada. Além dessa fachada, havia uma paisagem de que jamais me esquecerei: a tapeçaria da cidade, aqui entremeada por árvores, muitas delas floridas. E à esquerda e acima, bem ao sopé das montanhas, espalhava-se o Quartier Jalousie, imensa comunidade de casebres coloridos. Uma das inúmeras favelas — ou, como também ensinou-me Louise, bidonvilles — do Haiti.

Apesar da animação com a chegada, eu continuava sonolento. Assim, logo após o almoço, despedi-me de Louise e fui descansar. Rubens ainda estava na embaixada e chegaria somente ao final do dia. Ajustei o relógio para que despertasse dali a algumas horas e para que pudesse enfim dar um forte abraço em meu amigo, de quem tanto gostava e a quem não via fazia anos.

***

Nada aconteceu como planejado, contudo. Acabo de despertar, retornando de um sono críptico, e demoro alguns minutos para entender onde estou. Aos poucos vou despertando e olho para o relógio do celular: cinco e quarenta e três da manhã. Dormi por mais de doze horas.

Abro a janela atrás da cama e, sob a luz oblíqua que vem do leste, à minha esquerda, vejo as casas rareando montanha acima, muitas pobres e algumas poucas luxuosas, incrustadas na massa indistinta de terra. Para além delas não há mais construções — tudo vai escurecendo até chegar ao breu, onde a cordilheira se recorta contra o céu incerto da aurora. Um galo canta.

Agora estou completamente desperto. E grudento, já que sequer liguei o ar condicionado ou abri a janela antes de desmaiar; mesmo no raiar da manhã, o calor é sensível. Tomo um longo banho e vou para a cozinha, que é separada da sala de jantar por um balcão. Sirvo-me de água e procuro pelo café quando ouço um chapinhar no porcelanato do apartamento:

Bonjour, monsieur Hipólito!”

Rubens continua o mesmo. Pulando cedo da cama, o rosto inchado e a voz rouca chamando-me pelo meu sobrenome. Após um longo abraço, noto que, fisicamente, ele tampouco mudou. Com a exceção do bronzeado caribenho, é o mesmo sujeito esguio, desenvolto e com trejeitos de mágico, cujas mãos acompanham as palavras à moda de serpentes, ambas enfeitiçando interlocutores — e interlocutoras, claro. Conversamos por quase duas horas. Louise logo junta-se a nós e, em jogral, os dois colocam-me a par da situação do país.

Embora tivesse quase que sumido da mídia internacional, o Haiti continua no fio da navalha. Há pouca ou nenhuma infraestrutura, a população morre de fome e de doenças de séculos passados, a economia inexiste e o país ainda está totalmente vulnerável às catástrofes naturais.

À parte disso, os haitianos seguem adiante. O povo vai ao (pouco) trabalho que existe por aqui, ouve-se música onde quer que se vá e os Rarrás estão pelas ruas.

“O que é isso?”, pergunto.

Rarrás? São desfiles de rua improvisados, típicos do Haiti.” Louise não esconde o orgulho ao explicar-me. “Começam com alguns garçons das bidonvilles. Eles improvisam uns instrumentos de sopro e de percussion e saem tocando. Vão atraindo mais e mais gente por onde passam”.

“Parece carnaval,” digo.

“Sim, mas pode ficar bem intimidador,” Rubens interfere. “Principalmente pra quem é de fora.”

“Certo, nada de Rarrá. Mas e o vodu?”, pergunto.

Louise encara-me por alguns segundos.

“O que tem?”, devolve ela, desafiadora. Rubens dissera-me que a esposa desaprovava o meu interesse pelo assunto, mas não consigo evitar. Estou no berço da tradição religiosa, afinal.

“Será que dá pra vermos uma cerimônia, algo assim?”

“Teria que ser com um guia,” contemporiza meu amigo. “Preciso ver se arranjo algum contato na embaixada. Mas hoje vocês podem dar uma volta por Pétion Ville.”

Rubens vai para o trabalho e nós saímos algumas horas depois, Louise ao volante do Tucson que estava empoeirado na garagem.

Trafegar pela cidade é, sem dúvida, uma experiência singular. A atenção de quem dirige deve ser total: há pedestres, motoqueiros sem capacete, animais e entulho pelos caminhos. Mas também há cor, muita cor. Ao sol do final da manhã, chamam-me a atenção as árvores floridas com que cruzamos. “Gengibres e alpínias,” conta-me Louise; pois bem, gengibres e alpínias destacando-se do emaranhado estreito e confuso que percorremos.

Frutas também estão por todos os lados — bananas, mamões, mangas e corossol, que Louise explica ser uma espécie caribenha de graviola. Vejo-as em cestas nas calçadas e naquelas que mulheres equilibram na cabeça, marchando lentamente pelas vielas. Muito lentamente, talvez…

Olho ao redor e penso, de novo, nos espíritos que foram exilados de seus corpos. Relembrando-me dos rituais sobre os quais li, penso nesses mesmos corpos que, em noites de lua jovem e à custa de farelo de tíbias humanas, galinhas decapitadas, sapos secos, talagadas de rum e outras iguarias semelhantes, foram julgados e condenados a vagar sem rumo por esta terra de segredo, dia após dia, noite após noite.

A fome me tira dos devaneios. Almoçamos com Rubens em frente à embaixada brasileira, que fica em um prédio à prova de terremotos em Pétion Ville. A comida é deliciosa: um griot — carne de porco levemente apimentada e com pikliz (o condimento oficial do Haiti, feito com repolho, cenoura e outros temperos locais) — acompanhado por arroz e feijão à moda créole e banana frita. Para beber, uma garrafinha de Prestige, a lager local, prestes a congelar.

Durante o almoço, retomo o vodu. Louise percebe que não há saída, e aceita nos explicar o que sabe sobre a religiosidade de seus conterrâneos. Fala da origem no Benim, na África Ocidental, e sobre como o vodu, ao contrário do que sempre pensei, não é uma religião anímica, pois não atribui alma a elementos da natureza.

“O voduísta serve aos loas, que na verdade são as múltiplas expressões de Dieu,” conta em voz branda. Deve haver uma grande interrogação em meu rosto, então ela prossegue:

Oui, Dieu. Também no vodu ele é a força suprema, mas está muito distante, no topo do pantheon. Por isso, no dia a dia, os haitianos interagem com os loas. Fazem pedidos, entregam oferendas, como em tantas outras religiões. Existem muitos loas: tem Agwe, esprit do mar; tem Ogoun, esprit do fogo e dos metais…”

“Como Ogun do nosso candomblé,” interfiro.

“…Oui, acho. Lembro-me também de Legba, loa das encruzilhadas, de Ghede, loa dos morts…”

“Baron Samedi, claro!”, agora é Rubens quem fala. Louise olha-o com espanto.

“Esse é um dos cinco Ghedes, o mais perverso.”

“Existe quem o sirva?”, pergunto.

“Infelizmente, sim,” completa ela. Mas já terminamos nossas refeições e ela não parece mais disposta a falar.

Rubens volta ao trabalho e vou com Louise tomar um café em um dos poucos centros comerciais da cidade. Estou completamente desperto, agora, e não preciso fazer esforço algum para continuar sentindo o local.

Há desalento por todos os lados, sem dúvida. Faz muito tempo que os haitianos não sabem o que são dois ou três anos de calmaria, então acostumaram-se a viver na base do curtíssimo prazo, um dia depois do outro. Ou melhor, a sobreviver, custe o que custar. No entanto, ainda que o porte encurvado e o trote lento das pessoas expressem desistência — e remetam-me ao sobrenatural, é verdade –, percebo, no fundo de seus olhares, algo que ainda queima. Um fogo que, dirigido a blancs como eu, pode ser hostil; mas fogo, ainda assim.

Há, também, algo que me escapa. Conforme caminhamos de volta ao carro, percebo, para além da confusão urbana, uma substância no ar que sou incapaz de determinar, mas que não me parece ruim. Algo diferente da eventual hostilidade. À medida que avançamos pelas ruas de volta para casa, ao calor do entardecer — e talvez por causa dele –, vêm-me à mente as mesquitas de Istambul, onde eu estivera alguns meses atrás. Com a lembrança, vem também um termo: “chamamento”. Por estranho que pareça, sinto-me chamado, impelido a descer do veículo e a juntar-me à multidão — ainda que Rubens, Louise e qualquer guia de viagem recomendem expressamente que não se faça isso.

Contenho meu ímpeto, mas estou absorto. A paisagem da janela dá lugar ao reflexo de Louise, que me olha de relance e com frequência.

“É fascinante,” confesso, voltando do transe.

“Que bom que você acha. Provavelmente vai adorar o Oloffson,” ela diz.

“Oloffson?”

“É, um hotel na parte baixa da cidade,” ela fala devagar, focada na direção. “Costuma ter musique ao vivo, o Rubens sugeriu irmos lá hoje à noite.”

“Ótimo!”

Estou realmente empolgado, disposto a aceitar o que quer que venha. O impulso é cada vez mais forte. Mas o dia já declina, as sombras esticam-se. Acho que consigo controlar o ímpeto por mais algumas horas. Buscamos Rubens na embaixada e voltamos ao apartamento para jantar.

***

“Onde está a cidade?” Apoio-me no parapeito da varanda, segurando o copo de Negroni com cuidado.

À noite, a tapeçaria que eu observara pela manhã desapareceu. Diante de mim, tudo parece invertido: acima, o céu nublado e sem estrelas transforma-se na terra apagada; abaixo, a massa escura, pontuada por luzes esparsas, torna-se o céu. Mas a minha pergunta é retórica — sei que o vazio é uma ilusão. Por trás das nuvens, está o universo. Por trás da escuridão e das luzes pálidas, estão milhões de haitianos.

“Energia elétrica ainda é um luxo pra maioria das pessoas.”

Rubens chacoalha o gelo de seu drinque — uma grande pedra já derretida pelo calor da noite, tão ou mais intenso que o do dia. Explica-me sobre o problema do fornecimento energético, um entre os inúmeros do Haiti. Ouço-o em silêncio, tentando imaginar aquelas vidas seguindo seus cursos no breu, todas as noites. Logo, meu amigo também silencia.

Somos interrompidos por Louise, que nos apressa. São quase nove da noite e ela não quer voltar muito tarde.

Alguns minutos depois, já estamos no caminho para o hotel. Como a iluminação pública é mesmo rarefeita, Rubens dirige por quase todo o trajeto com o farol alto. Não consigo tirar os olhos da janela, da completa ausência que ela revela, ainda tentando adivinhar os mistérios que se ocultam por lá.

Mas logo me dou conta de algo além dessa especulação. Algo assustadoramente longínquo, anterior até mesmo ao chamamento que senti antes. Não sou capaz de deter aí minha atenção, tão difuso é o objeto — se é que assim posso chamá-lo. Parece representar uma intersecção de tudo o que vi e senti até agora: corpos vazios, breu e mistérios.

“Chegamos,” avisa Rubens. O carro está em frente ao portão de uma enorme construção. Ao redor, sob o único poste aceso na rua, pessoas vão aproximando-se de nós. O portão é aberto, empurrado por um homem cansado que se arrasta na nossa direção. A escopeta em punho dispersa o pessoal. Ele conversa rapidamente com Louise, volta e abre passagem.

“Podemos entrar.”

Aqui, tudo também às escuras. Subimos por uma rampa até o pátio do hotel e, mesmo à noite, com poucas janelas iluminadas, entendo por que o local é um dos mais interessantes de Porto Príncipe: é de uma tremenda mansão em estilo neogótico que nos aproximamos, a pintura branca empalidecendo-se à luz dos poucos holofotes dirigidos a ela. E é majestade o que as luzes revelam. Uma majestade já decadente, mas ainda poderosa — o Oloffson foi um dos raros edifícios do centro da cidade a resistirem ao terremoto de 2010.

Estacionamos e descemos. Tudo está silencioso, não há música ou festa alguma. Ninguém à vista, sequer para receber-nos.

“Acho que erramos,” diz Rubens, olhando os arredores com curiosidade. Salvo por duas ou três janelas iluminadas, o hotel parece abandonado.

Viro-me e vejo quatro pequenos pontos luminosos dançando no escuro, acompanhados por latidos: os olhos de dois cães de porte médio, provavelmente vira-latas. Farejam-nos, parecem amistosos. Decidimos dar uma volta pelo lugar, e os animais nos acompanham.

Somos atraídos pela iluminação do que parece ser um grande quiosque mais abaixo. No caminho até lá, acendo a lanterna de meu celular. O movimento da luz mostra algo nos jardins que cercam o hotel. Desviamos a rota em direção a eles, conversando descontraidamente. Quando chegamos, emudecemos.

Bem à nossa frente, há um pequeno crânio espetado no que parece ser uma lança. Há também um suporte, espécie de cabide, para os andrajos de cetim colorido que servem-lhe de roupa.

Mas não é o único: conforme iluminamos o jardim, vemos inúmeros… tótens parecidos, lado a lado. Uma pequena multidão de crânios empalados, suas vestimentas cintilando ao refletirem a luz da minha lanterna.

Detemo-nos por aqui. Eu, siderado; Rubens, interessado; e sua esposa, apreensiva.

“Você tinha razão, Louise,” afirmo, pulando a cerca que nos separa do jardim. “Estou adorando o Oloffson.”

“Melhor não,” responde ela.

Mas não resisto. Ilumino os tótens e, vendo-os, logo penso nos poto-mitan, que Louise explicou-me serem os mastros que ocupam o centro dos templos vodus — chamados de hounfours. Rubens vem atrás de mim, curioso. Os cachorros acompanham-nos em silêncio, farejando por todos os lados.

No susto, sem querer, dirijo o foco para o que parece ser um poste maciço, à esquerda de onde Louise apoia-se à cerca. Aproximo-me. Mais acima, amarrada ao poste, há uma figura que parece crucificada: dois grandes tocos cruzados sustentam, na altura da cabeça, uma enorme pedra com chifres. Abaixo, do que seria a região da virilha, projeta-se um serrote entre duas latas redondas. Parece haver sangue na lâmina.

“Acho que hoje não vai ter música ao vivo mesmo,” afirma Rubens em um tom sarcástico, recuando.

“Melhor irmos embora” – percebo apreensão na voz de Louise.

“Calma, vamos olhar um pouco mais,” digo. A frase surpreende até a mim mesmo.

“É, isso é bem curioso,” completa Rubens.

O lugar realmente me interessa, mas não é só isso. O que quer que tenha sentido antes — continuarei denominando chamamento — é muito mais incisivo aqui. E quando chegamos ao grande quiosque, o chamado parece… multiplicar-se. Percebo-o vindo de diferentes fontes, uma vibração mais intensa na aragem noturna.

Sim, respondo mentalmente, mal me dando conta disso.

Acho que não sou o único a sentir a vibração do lugar: assim que entramos no espaço, os cachorros, que nos acompanhavam em silêncio, saem em disparada e começam a latir. Latem sem parar, avançando no nada. Entre seus latidos, ouço a respiração ofegante de Louise.

Sim, repito, agora mais consciente. E assustado.

“Acho mesmo que temos que ir,” ela insiste.

Não me sinto capaz de argumentar, mas Rubens intervém:

“Só uma volta por aqui e vamos pro carro.”

Também pouco iluminado, o quiosque parece um enorme coreto, com o piso de terra em que estamos e cadeiras retráteis bagunçadas ao redor.

Mais ao centro do terreiro, percebo alguns desenhos no chão. Foram feitos com talco ou giz branco e apresentam formas geométricas bastante complexas, cujo sentido não consigo captar.

Ao chegarem perto dos desenhos, os cachorros ladram com ainda mais força, como se tivessem contraído raiva. Os latidos misturam-se ao espocar do choque de suas mandíbulas, tão furiosos estão.

Louise, ao longe, é a última a notar os rabiscos. E, quando aproximo meu pé de um deles, ela solta um grito que emudece até mesmo os animais. Ao berro, sucedem ecos estranhos, abafados. Soam como gargalhadas em surdina, mas logo extinguem-se.

“É melhor irmos”, Rubens agarra meu braço. Viro-me e vejo Louise retomando o caminho por onde viemos, indo rapidamente em direção ao carro.

Vamos atrás dela. Quando me aproximo da saída do terreiro, sinto um puxão por trás: um violento solavanco pelos ombros. Viro-me mais uma vez, agora irritado com Rubens. Mas só vejo os cães, que voltaram a latir.

Allez, merde!” Louise grita ao longe, já próxima ao carro. Vejo a sombra de Rubens já distante, também chegando ao veículo.

Quando enfim saio do grande quiosque, sinto o chamamento dar lugar a outra sensação. Também é familiar: meus sentidos destacando-se do corpo. Mais uma vez, tenho a impressão de flutuar ao redor de mim mesmo.

Desacelero o passo. Agora, estou inteiramente no momento. Não me sinto nada zonzo ou entorpecido. Afasto-me, e é como se me erguesse. Logo, pairo a alguns metros de meu corpo, que está abaixo, na entrada do quiosque, e daqui contemplo o lugar em que estamos. A luz é pouca e fraca; para além dela e por todos os lados, o breu.

De súbito, ouço um rumor distante. Batuques, talvez, ou galopes; não sei ao certo.

Daqui, ou de lá, vejo meu corpo indo em direção ao carro, que já está com os faróis acesos. Mas vai — ou vou lentamente, para desespero de Louise e irritação de Rubens, que grita algo que meu corpo não consegue — ou eu não consigo — distinguir. É uma figura mudada, a minha, de caminhar vagaroso e encurvada. Rubens logo empurra-a — ou a mim — para dentro do veículo. Depois bate com força a porta e, em três saltos, chega ao assento do motorista.

Sigo-os, agora sim certo de que sou eu mesmo. E certo de que são batuques o que ouço: tambores desordenados, acompanhados por sopros graves, desafinados… a palavra Rarrá me vem à mente.

Suspenso no ar, fixo-me onde a luz já não alcança, mas onde tudo torna-se curiosamente mais claro, vívido, sensível. Abaixo de mim, os cães continuam enlouquecidos, agora indecisos entre a fúria e o lamento. Não sou capaz de ir além, rumo ao breu. E é de lá, onde não me arrisco a ir, que o alarido vem. Aproxima-se sem cessar, rumorejando com cada vez mais força; em poucos segundos, já o sinto logo atrás de mim.

Abaixo, o carro começa a movimentar-se. Vou em direção a ele, a balbúrdia logo atrás de mim. É mais rápida do que eu, e logo me alcança.

Rubens, então, olha para cima, na minha direção pelo para-brisas; e grita. Seus olhos miram além de mim e começam a lacrimejar, mas não preciso virar-me para entender o porquê: no reflexo do vidro do carro, vejo uma procissão de pesadelos. Abominações medonhas e diáfanas, os rostos rubros, acesos como velas votivas. Muitas, muitas delas aproximando-se em marcha caótica.

Devo estar nessa multidão, mas já não me reconheço. Além do reflexo, no banco de trás do veículo, vislumbro o corpo que fora meu de olhos revirados, a boca abrindo-se com um espasmo. Ao lado do marido, Louise recusa-se a olhar; mas é ele quem dirige. Com um movimento brusco, Rubens acelera violentamente o carro, espatifando-o contra o poste da crucifixão e arremessando a si e à esposa pelo vidro dianteiro.

No mesmo momento, perco-me para sempre e enfim avanço. Avançamos — impelidos pelo rumor vingativo da terra, ou mesmo do que antecedeu a ela — em direção aos corpos mutilados e agonizantes. Avançamos do breu à luz branda da vida que se extingue, para tomar posse de tudo o que vive e precisa morrer.

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Oscar Nestarez
 é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou “Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura” (ed. Livrus, 2013), as antologias “Sexorcista e outros relatos insólitos” (ed. Livrus, 2014) e “Horror adentro” (ed. Kazuá, 2016), e o romance “Bile negra” (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. Oscar também é colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror.