É verdade. Depois de um transplante, nunca mais se é o mesmo. Minha cabeça original está apodrecendo em algum monturo ao crepúsculo, ocada como um pão francês sem miolo. As moscas que penetram minhas órbitas vazias – também os olhos foram salvos – desiludem-se com a ausência da massa esponjosa, invaginada, circunvoluta, hipernutritiva, ideal para o depósito de ovos. Tapurus se alimentariam de meus neurônios e axônios, minhas sinapses, alojando-se na bainha de mielina. Mas tudo está seguro neste novo invólucro, que ao olhar no espelho com os velhos olhos vê essa cabeça de mulato, essa cara grande pela própria ossatura, esses cabelos densos, crespos, mas que é possível repartir ao meio e pentear. Talvez a influência de uma herança indígena. Que cabeça. Me espanta que meu cérebro não chacoalhe aqui dentro. O engaste dos olhos foi imperfeito. Se me olho no espelho de esguelha, com o queixo levantado, vislumbro uma nesga negra de vazio entre meu olho direito e a pálpebra, em seu canto superior, direito, extremidade de sua asa. Um vácuo que dá para dentro de mim. A partir dessa cabeçorra contemplo o crepúsculo lilás e púrpura dentro do qual minha branca, calva, afilada cabeça original apodrece. Ter cabelos. É das coisas que mais me repugna, nessa época. Pegar nos meus cabelos é como estar de pé num ônibus lotado e inadvertidamente iniciar um cafuné no desconhecido sentado à minha frente, quem sabe tirando a merecida soneca de final de expediente, usufruto do tempo do engarrafamento. A linha no meu pescoço. Ali pareço uma saia-e-blusa, a sobremesa, só que acho que nela o chocolate fica embaixo e o creme em cima. A linha divisória. Há algo ali que lembra arame farpado, a cicatriz do trauma. Noto, sempre o espelho, que começam a surgir interferências de pigmentação, pontinhos brancos no chocolate, pontinho escuros no creme. Um rosto jovem, mais jovem que eu. Não sei nada a respeito de seu antigo dono; os médicos acham melhor. Desconfio que seja apenas mais prático, mais conveniente. E a família que concordou com a doação? A família concordou com a doação? Tinha ele família? Era um indigente ou um noiado e por isso o silêncio da equipe médica? Estão fazendo experimentos com pessoas retiradas das cracolândias? No monturo, ao lado de minha cabeça oca, as moscas frustradas encontram os miolos desse rapaz. Depositam neles os ovos, nos vales férteis, fecundos, úberes, pingues das circunvoluções. Debaixo dos caracóis… dos teus cabelos… Debaixo dos caracóis… do teu cerebelo… Mais nenhuma história pra contar, mais nenhum mundo distante. Em nome da conservação dos meus. Era mesmo um morto fresco e recém-congelado ou fora caçado no labirinto para me fornecer a magnífica urna? Parece ter sido escolhida a dedo, a mais resistente a impacto. Não era boxeador. O nariz não é chato nem muito menos achatado. As narinas são amplas, mas o pau da venta é longo. O rosto não é gordo. É largo, mas não é gordo. Sempre que o coço – os rostos têm a mania de coçar, principalmente quando se lava pratos –, tenho a sensação do ônibus lotado, sinto minha mão pequena demais para aquela carantonha. Alegre. Não é um rosto triste. Fiz um corte especial, no Intercoiffure Shelley Cabeleireiros. Máquina nas têmporas, de modo a ficar com o que no século XIX chamavam a trunfa. Sobre a risca e o repartimento sei que não tive interferência. Era o modo como ele se penteava. Isto apenas herdei. Ele tem pouca barba, eu tinha barba. Agora eu e ele não temos barba. Ganharei o apelido de Frankenstein. Devia ter pedido o reembolso de minha caveira. Poderia fazer o monólogo de Hamlet com meu próprio crânio. A noite nos engolirá sem discriminação.
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João Paulo Parisio (Instagram / Site) é autor de Homens e outros animais fabulosos, Esculturas fluidas e Legião anônima. A Peleja do intrépido Eusébio Encarnado com o Fantasma de Branca Dias é o quinto canto de A Águia e o Fígado, um longo poema narrativo. *Cabeça é um dos contos parasitas do romance Nu útero da quimera, pelo qual João Paulo Parisio foi um dos vencedores do prêmio Pernambuco 2018. No prelo.