CHIAROSCURO – CINTHIA KRIEMLER

Intocada. Deitada nesta cama macia de lençóis macios de travesseiros macios em que nossos corpos macios se entrelaçam em busca e encontro. Cama de cheiros. O de alfazema. O seu.

Não, hoje, não.

Hoje, o cheiro é de medo. Cheiro de perceber. De dar-se conta. Cheiro de choro em desconsolo. Choro branco sem nenhum direito. O direito ficou lá atrás. A decência também. No baculejo do beco. No apartheid das cores.

Apanha, Imaculada. Apanha, Fabrício.

Tá sentindo isso, neguinha? É o meu caralho encostado na tua bunda gostosa. Vai fazer o quê? Vai fazer o quê? E tu aí, seu crioulo safado, que é que tá olhando? Tu tá me encarando, seu viado?

Na minha carne branca, nem um dedo. Nos meus ouvidos brancos, nem um grito, nem um sussurro daquela boca nojenta. Só uma voz dissonante:

Por que é que tu te mete com essa gentinha, moça? Anda! Vaza, vaza!

A minha bolsa de branca, pendurada no meu ombro branco. Intocada. A sua, Imaculada, esparramada no chão com força. No beco, tudo é força. No beco, um baseado decide a sorte do negro. E condena.

Não tem mais madrugada, Imaculada. Não tem, Fabrício — o seu corpo ainda não está na minha cama. Quando você chegar — há de chegar, há de chegar, há de chegar —, vai trazer cheiro de sangue para os nossos lençóis de alfazema e de amor. Conspurcação.

Esse sangue negro que é colhido toda hora, que é sugado gota a gota. Escorrendo, fazendo crosta, afogando a alma. Alma sangra mais do que corpo, Fabrício. O corpo, mija. O seu mijou. A cada porrada que o cassetete deu nos seus rins. E no seu mijo também tinha sangue. Negro. Esse que roubam de você nos becos, nas passeatas, nas paradas de ônibus, nas comunidades. Tão desigual ao sangue meu. Que nunca verte. Que nunca pinga. Que sempre é branco. Tão desigual.

Vem logo, Fabrício. Corre. Vem pôr a mão nesta barriga que embala o nosso sangue negro, branco. O nosso Chiaroscuro. Foi essa a palavra que o Luigi disse lá na faculdade, não foi? Que o nosso bebê vai ser chiaroscuro. A princípio, não gostei. Porque a nossa cria não vai ser sombra, Fabrício, não vai. Mas depois entendi a beleza do contraste. Foi um carinho do Luigi.

Vem pra casa, vem. Fazer a sua cria pular de alegria com o toque das suas mãos — e eu também. Vem contar pra ela da luta que não vai cessar, do medo que vai acabar, da noite que tem um céu tão lindo quanto o céu do dia. Conta de nós. Do nosso amor de cheiros. Tão imenso. Tão alfazema.

E traz a Imaculada pra cá. Não esquece. Não deixa ela ir embora sozinha. Não deixa ela sentir medo sozinha. Abraça ela bem forte. Como eu te abraço quando você chega. E se ela chorar, deixa. É choro de expurgo. Que de você tiraram quase tudo. Dela, também.

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Cinthia Kriemler
é escritora e Relações Públicas. Bacharel e Especialista em Comunicação pela Universidade de Brasília-UnB. Carioca, mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015), semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz, em 2017, a convite da Editora Penalux.