COMO UM ENVELOPE – NATHALIE LOURENÇO

Você vai chegar em casa muito depois das luzes da rua se acenderem. Hoje é o dia que você vai pro bar. Abrindo a porta e encontrando a casa escura, você não vai perceber nada. Ainda mais porque não vai se dar ao trabalho de chamar, ligar as lâmpadas ou a televisão, você vai chegar escondido, sorrateiro, silencioso, tirar os sapatos ao lado da porta como aprendeu com um amigo de infância coreano de quem gosta de lembrar apesar de não se falarem há muitos anos. E vai tomar água gelada, tentando não fazer barulho com o copo, mas logo em seguida vai se esquecer e fazer o vidro triscar contra o mármore da pia. Você não é tão silencioso quanto pensa. Especialmente depois, quando abrir o chuveiro no mínimo, como se isso impedisse o som da água de se chocar contra as paredes. E a água vai cair por um bom tempo, e você sairá dela ainda bêbado mas cheirando a sóbrio, quer dizer, em tudo menos no hálito que escapa da sua boca. E aí sim, rosa, úmido, com o cabelo gotejando você vai entrar no quarto para penetrar a cama como um envelope entra por baixo da porta. E quando sua mão encontrar o vazio, você vai se dar conta. Pela primeira vez desde que chegou vai acender a luz, o abajur ao lado da cama. E enquanto seus olhos se ajustam, vai passar pela sua cabeça que eu sei (sim, eu sei), ou que eu tive que sair, e aí você vai procurar seu celular no bolso da calça caída no banheiro, mas não haverão mensagens. Na sala, na cozinha, no banheiro e no quarto você já esteve. Sabe que não estou lá. Então finalmente vai notar a porta fechada (e não entreaberta, com a luz amarela reconfortante se esparramando para fora) no quarto de Julinha e sentir o puxão, o puxão violento da consciência arrancando tudo no caminho, e ver que sua filha não estará lá, as pelúcias, e as fantasias de fada e a mochila, nada disso estará lá e por isso você vai se sentar na beira da cama pequena, curta, de criança, e sentir que é pequeno demais mesmo para ela. E quando desviar o olhar vai ver algo dobrado, um papel comum de caderno, dobrado sobre o travesseiro da sua filha. E só aí, quando estivermos longe, bem longe, só aí você vai encontrar esse bilhete.


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Nathalie Lourenço é redatora publicitária e autora do livro Morri por Educação (Ed. Oito e Meio). Publicou contos em revistas literárias como Parênteses, VacaTussa, Blecaute, Philos e outras. Nasceu em 1984, ano que tem uma carreira paralela como livro distópico, num dia próximo o suficiente do Natal para seu nome fazer sentido. Tem 5 graus de miopia mas tira os óculos para dormir. Seus pesadelos estão sempre fora de foco.