COMPANHIA – MARCOS RAMOS

Cinco semanas depois, eu ainda sentia o frio daquela sala, o frio daquele dia. Ofereceram-me pão, café. Eu tinha fome e não queria ter. Não é assim? Quando se está triste, sempre perguntam se a gente quer comer, e parece que a resposta que temos que dar é essa: Não tenho fome. Tive vergonha de dizer que queria. Insensível de minha parte, satisfazer meu estômago. Assim que viraram as costas, porém, fui direto às bolachas ao lado do bebedouro.

Caminho repleto de silêncios. Viajar com alguém que não se conhece pode ser um martírio, mas não para mim. Bom colecionador de histórias que sou, gosto de ouvir e contar, mas não daquela vez. Eu queria apenas o silêncio e que o tempo passasse. Não passava. Será que tem filhos? Será que faz isso há muito tempo? Quão frio alguém precisa ser para lidar com tais situações? Nada disso eu perguntei. Talvez nem quisesse saber. Insensibilidade da minha parte. O celular tocou algumas vezes durante a viagem, descobri sem perguntar que: sim, tinha filhos e fazia aquilo há algum tempo. Não me ensine a fazer o meu trabalho. Falava de valores, vagas e flores, enquanto dirigia e comia chocolate de uma caixinha azul. Claro que neguei quando me ofereceu, não me é permitido sentir fome nessas horas. Mas tinha. Escondido, e por um motivo que inventei na hora, me servia de um saquinho de amendoins que comprara no dia anterior. Ainda que dentro do prazo de validade, estavam murchos. Aguçaram mais a minha fome. Vamos parar um pouco, comprar algo para comer. Fui ao banheiro, o lanchinho proibido saiu por onde entrou. Atrás de mim estava aquilo em que eu evitava pensar. Repousava. Penso, hoje, que esta foi uma boa decisão: não pensar muito. Distraí-me com uma tragédia colegial, capítulos salvos na memória, para momentos e lugares onde não há conexão. Ali também havia perda, porém longe, distante e não minha. Sem conexão, distraí-me. Preciso saber qual é a religião da sua família. Tirei os fones. Repetiu. Informei. Será que há diferença? Talvez não para mim. Para eles, sim. Para ela, sim. Nada mais que solenidades. Uma família precisa de um tema comum. Algo que ligue seus membros. E a religião fez bem esse papel. Mas neste dia – ou foram dois? – a reunião teria motivo distinto. Ainda demoraria para chegarmos. Havia três no veículo, silêncio quase que absoluto. Ainda que dois dos passageiros ainda possuíssem fôlego e voz, poder falar não fez diferença alguma. Ainda demoraria para chegarmos. E não me esforcei para preencher nenhum dos vazios daquela viagem. Quando saí do carro, percebi que chegar também não fez diferença. Doze horas de estrada, levaram a outras horas de espera. Preparação. Havia muita gente à espera, além de mim. Mas não ali. Foi nesse momento que ofereceram o pão e o café. Sozinho, em uma cidade onde nunca havia colocado os pés, fingi novamente não ter fome, enquanto fingia ter calma e estabilidade, esforçadamente.

Calmos estavam aqueles que entraram comigo – ou fingiam muito bem, como a mim. O carro havia entrado pelos fundos, depois de me deixar à porta, à espera de alguém que a abrisse. Durante a espera, ela perguntou se eu trabalhava lá, diante da resposta negativa, pediu desculpa. Não se preocupe. Não abriam por nada, e começava a chover. Ele tocou a campainha novamente. Não demonstrava impaciência, apenas não queria se molhar. Quando enfim entramos, foram direto à mesa e eu às cadeiras, nada de minha parte precisava ser dito ou feito, todos os trâmites e documentos já estavam assinados, eu era apenas o “acompanhante”, “familiar”. Depois de negar o pão, passei a escutar. O livro que eu havia começado a ler não me distraía daquilo que não queria pensar, então comecei a ouvir. Eles falavam do acidente. Não sofreu, sabe. Foi tudo na hora. Eram familiares, assim como eu. Pergunta se o familiar quer alguma coisa. Oferece um café, por favor. Os familiares perguntaram bastante: quanto tempo demoraria, quais os valores e demandavam os tipos de flores e solenidades. Sem perguntar, descobri que era muito jovem, sobrinho daqueles que ali estavam, voltava da casa da ex-esposa, onde havia deixado a filha depois de um final de semana juntos. Todos os órgãos puderam ser doados. Esta última parte foi dita em tom de alívio, na voz ainda que embargada desta tia que eu não conhecia. Ficaram pouco tempo, diferentemente de mim, não esperavam nada. Esperei, como os outros além de mim, mas em outro ponto, outra cidade, em um local não menos mórbido que aquele onde eu me encontrava. Em verdade vos digo que não me encontrava. Há tempos que me perdia. Prefiro, aqui, dizer que ali estava. Encontrar-se é expressão forte.

Cada um tem um medo particular. E eu tinha o meu, desde pequeno eu tive medo, não da morte em si, mas do que a cercava. Dos ritos posteriores, dos lugares que a recebem e ritualizam. Medo que me impediu de consolar amigos. Por que você não vai? Não gosto, não consigo. Seus símbolos causavam-me mal-estar maior que o próprio partir. A aversão aos lugares onde a morte era recepcionada me acompanhou por muito tempo. Desviava das ruas onde havia qualquer coisa relacionada a ela, e me admirava saber que existiam casas tão próximas. Por que alguém haveria de morar ali? Hoje como adulto, enxergo nestes lugares certa beleza que vai além da melancolia e morbidez reinantes em suas aparências. Enxergo certa opulência nas formas como se expressa e se presencia o rompimento deste véu que separa um estágio do outro. Não sei se há beleza na morte, aliás, não há. O que vi nestas últimas horas não possui o belo como ornamento, mas seus ornamentos eram belos. Natural – talvez – e infantil, o medo que eu tinha transformou-se. Pela primeira vez, vi os estados e estágios que antecedem os ritos que repudiava. Que antecedem a cerimônia. Perdi um medo. Frio, vi nas preparações e na espera um momento de calma e frieza. Esperando, naturalizei-me no ambiente. Frio, nas mensagens trocadas. Esperavam, mas não a mim, eu apenas acompanhava. Pronta. Partimos.

Chegamos juntos, mas não entrei. Havia muita gente, gente que nunca vi. Nem antes nem ali. Difícil distinguir quem não se conhece, ainda que compartilhando o mesmo sangue. Abracei e fui abraçado. O que vão pensar de mim? Frio. Vem, você deve estar com forme. Estava. Não escondi dessa vez. Minha irmã me levou até o carro. Pela primeira vez desde que eu entrara naquele outro veículo – que a essa hora partia vazio dela e de mim – senti certo calor. A comida ainda, por mais estranho que pareça, estava quente. Chorei. Também pela primeira vez desde a viagem. Terminei a refeição improvisada. Parte de mim queria que alguém me visse chorando. Mas as lágrimas secaram antes de voltar para o lugar todos estavam, inclusive ela, minha companhia de viagem. A reunião familiar que ela tanto quis, aconteceu. Em circunstância diversa à que imaginávamos, mas aconteceu. O silêncio foi seguido por ritos. Solenidades não ensaiadas. Apenas aconteceram. As cores não vieram das flores: a tristeza não se traduziu em roupas, nem se colocou de manto preto. Veio em forma de choro, desmaios – não sei se verdadeiros – de certo desespero não esperado, mas, principalmente, veio em forma de canto. Um canto familiar. Sua canção favorita ecoou naquela madrugada. Então, fez-se barulho. Fez-se luz, como em seu nome. Por um momento, esqueci-me de estar triste. Escasso momento. Ao chegar a hora de entregá-la à terra, o ar vestiu-se de silêncio novamente. Mudez de quem perdeu quem lhes gerou. Entre os homens, acompanhei-a mais uma vez. A última. Ao pó voltaria.

Cinco semanas depois, o silêncio que cobria a nudez daquele acontecimento ainda assombrava aquela que viu tudo acontecer, daquela que a acompanhou primeiro: cheguei em casa e encontrei minha mãe sozinha. Sobre o corpo tinha o vestido amarelo que guardara junto com alguns colares e brincos que ficaram. Ao ver-me, parecia pedir desculpas. Você está com fome, não é? Mas não pediu. Nem deveria. Minha cabeça fez que não. Fui sincero. Ela abraçou a mim e ao silêncio. Depois rompeu-se em choro outra vez.

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Marcos Ramos é cria da periferia de Diadema – SP, é mestre em Literatura e Vida Social pela UNESP, formado em Estudos Lusófonos pela Universidade de Coimbra, Licenciado em Letras -Português/Francês pela UNESP – Assis. Se encontra, hoje, quebrado financeiramente, por conta de um estágio de pesquisa não remunerado que decidiu fazer às cegas na Sorbonne, além de correr contra o tempo dando suas aulas e tentando contribuir para impedir o falecimento total da Educação neste país que vive hoje dias sombrios.