GUTIERREZ – FELIPE PAULUK

em curitiba, quando eu tinha 13 anos, fugi de casa por uma semana. era mais ou menos nesse mesmo mês do ano que estamos agora. o frio entrava por qualquer fresta que a roupa proporcionava, parecia uma gilete gelada navalhando a carne. fui morar na casa de um amigo chileno. gutierrez. ele era cego do olho esquerdo. minha mãe ligou para todos os amigos, foi ao colégio, mas devido a depressão que meu pai enfrentava, a fuga de um filho rebelde-sem-causa era quase um alívio. morei com ele na favela da formosa. um lugar em que os grilos disputavam espaço sonoros com o zunido de balas. toda noite eu contava dois ou três disparos e rezava pra deus fechar meu corpo. eu não tinha planos após aquilo, no entanto, morrer ali não estava em nenhum plano antecedente. fumávamos, bebíamos e cheirávamos benzina antes de dormir. gutierrez morava com o pai que vendia cintos de couro e correntes de bali no terminal do capão raso. o homem não parava em casa. uma noite daquelas, sob efeito de benzina, eu e meu amigo começamos a delirar sobre mulheres e ele dizia: “manito, podemos ir para ‘sum’ paulo. virar ator pornô. imagina só, não estudar nunca más”. quando deu uma semana, certinho, ele teve que me dispensar de casa. o chuveiro estava quebrado. as bolachas maria haviam se esgotado e a benzina foi confiscada pelo velho. ele disse que ficaria comigo se pudesse, mas o pai dele precisava ficar a sós com ele. eu percebi que era hora de voltar pra casa. o abracei. era oito da noite de um domingo. agradeci pela estadia. juntei minhas coisas e parti de volta para casa, como um cão arrependido. alguns dias depois não vi gutierrez. fiquei sabendo por terceiros que o pai dele morreu assassinado dentro de casa. o chileno voltou para seu país e pediu para professora de português, chamada antônia, me entregar uma carta que ele escreveu. ela dizia: “durante todo este tempo em curitiba eu desejei não ter os dois olhos. planejei muitas vezes furar o outro para não ver mais a cara do meu pai quando me pedia para tirar a roupa. mas a semana que você passou lá em casa, me valeu pela alegria de como se eu tivesse os dois olhos enxergando. adiós.” guardei esta carta até 1999, depois a esqueci dentro de uma bíblia que vendi pro sebo.

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Felipe Pauluk é um curitibano residente em Londrina, jogou na loteria da vida e, numa quina, tirou o menor prêmio, a literatura. Lançou seu primeiro livro, Meu Tempo de Carne e Osso, em 2011. Hit The Road, Jack(romance), em 2012. Em 2015, outro romance, Town. Em 2016 lançou dois livros de poesia, Comida di butequim e Tórax de São SebastiãoManual Prático de Perna Mecânico para Cantores é o seu mais recente lançamento, pela Bar Editora. Além de escritor, Pauluk também é roteirista e diretor de clipes.