Sou um velho imorrível.
Umas trinta vezes decretaram minha morte. Fui atropelado por um caminhão, capotei com meu carro, uma moto me jogou contra um ônibus. Levei três tiros, num sábado de manhã na padaria. Estava comprando rosquinhas e uns malucos entraram para assaltar, tinha um civil de sunga comendo um quindim no balcão, tirou uma arma da pochete e começou o bang-bang.
Caí do cavalo, numa aula experimental. Rolei numa ribanceira, trabalhando numa fixação de outdoor. Um abacate enorme caiu na minha cabeça, no quintal de um amigo. Fiquei em coma quase dois dias. Quando eu era criança, um porco bravo quis me comer. Outra vez fui detonado por coices de um cavalo valente.
Adolescente eu apanhei por engano, de um camarada que batia pra matar. Fiquei todo quebrado. Caí da escada, na casa de uma namorada e quebrei as duas pernas ao mesmo tempo. Quando eu era noivo, furei um olho numa cesta de vime. Já casado, a panela de pressão estourou e a tampa bateu no meu braço que queimou e quebrou.
Tive umas três doenças raras. Tão raras que nem lembro o nome. Os médicos deram a notícia muito compadecidos e em poucos meses ficaram boquiabertos. Eu estava curado.
Agora sou um velho. Cansado. Minha esposa e todos os meus amigos morreram. Quero morrer, mas não consigo. Minhas taxas estão ótimas e nunca teria coragem de me suicidar. Sigo aguardando a próxima desgraça, torcendo que a morte vença a batalha.
_______________________
Alê Motta é arquiteta formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou da antologia 14 novos autores brasileiros, organizada pela escritora Adriana Lisboa. Interrompidos (Reformatório, 2017) é seu livro de estreia.