INCONGRUÊNCIAS – IVAN HEGEN

Parte 1 – Decepção

Recordo dessa briga com uma ponta de arrependimento, um a mais na conta das maldições de 2013. Dei uma forma precária a sentimentos negativos que ia captando de quase toda parte. Andar na rua contaminava, adoecia, e tanto pior não saber o que era aquela densidade cinzenta, pois estávamos à flor da pele e reagíamos mal a qualquer situação incômoda. Ainda não havia como prever os lances seguintes, apenas sentíamos uma tensão latente. Se eu soubesse que levaria a tanto desentendimento, não teria provocado, mas na época os impulsos eram irrefreáveis.

Para falar dela, preciso recuar quase duas décadas. A palavra Ruptura, ela a empregou em sala de aula no colégio, apresentando manifestos de artistas insurgentes. Ela bebia suas frases cadenciadas em deleite próprio, um tanto distante dos alunos, no enlevo de seu monólogo. Para minha adolescência tímida, pouco importava sua distância. Aprendiz, senti um calafrio bom, a reorganização veloz de sinapses diante da energia dela, que me parecia atualizar a intenção de vanguarda. Ruptura, proposta que eu buscaria incorporar, mesmo que de maneira torpe. Ruptura, desejo desperto que me marginalizaria, em missão estética que não permitiria concessões. Até a minha visão de amor teria que ser gradativamente ajustada para abarcar um afã revolucionário.

E foi uma declaração de amor no reencontro, anos depois, em novos papéis. Ela menos professora depois que se consagrou escritora, eu jovem adulto evitando o suicídio com os primeiros livros premiados. Foi declaração de amor quando resgatei a importância que teve aquela aula, o impacto inicial das vanguardas, salto qualitativo que me impelia à literatura. Em resposta, nada. Um silêncio opressor. Me perguntei se o problema era comigo. Talvez eu tivesse levado a lição a sério demais e me tornado um tabu. Será que nem mesmo uma advogada das dissonâncias se dignaria a me conceder um sorriso? Apesar de eu lhe atribuir o crédito de primeira mestra, ela rejeitava a afinidade. Me ensinava pela segunda vez sobre ruptura, agora com maior frieza.

Tentei seguir conversa por escrito. Da parte dela, tudo muito aquém, muito excludente. Ela não foi capaz, por exemplo, de condolências quando mencionei a morte do meu avô. Avô professor, que me fez pensar na professora que um dia ela foi. Um vento gelado de morte resvala nos dois. Desfeita a ilusão de que ela poderia se orgulhar de ser parte da minha formação intelectual.

Nunca lhe pedi mais do que vinte centavos de atenção, e após muito protesto eles até me foram dados. Porém de má vontade, e sem compreensão de que uma possibilidade mais ampla havia se perdido. Afinal eu havia delegado poderes a ela, havia reconhecido sua relevância em minha própria história, e sofri muito ao compreender que ela jamais me enxergaria para além de um estorvo.

 

Parte 2 – Obscurantismo

Imagino que muito antes de opressor propriamente dito, o modo de existir dele seja expansivo. Uma vontade de se alargar, de influenciar, de estender-se em prosa e afeto para dezenas ou centenas de pessoas que ele busca agregar. Ele se enxerga como um amigo fácil, e amizade para ele se basta na presença, no convívio, no compartilhar momentos. Seu principal defeito não tem, no primeiro momento, a gravidade do fascismo. É o orgulho, uma auto-imagem inabalável, impermeável a críticas.

Ele não exige de si mesmo uma coerência maior quando entra em jogo a política, e supõe que para ser respeitoso não precisa mais do que ser educado, civilizado no senso comum.  Ele acredita que está aberto ao diálogo, embora escute argumentos contrários de forma apenas protocolar, não sente necessidade de refutá-los com muita consistência. A falta de humildade o impede de perceber que seus argumentos são tecidos em mera convicção, carecendo de análises mais sofisticadas, fatos e dados. Ele enxerga mal o tabuleiro da política, incapaz de pensar correlação de forças, perceber movimentações complexas.

Por mais detestável que seja, busco entender. Se ele ousasse questionar com maior coragem, seu ego sofreria a cisão de todos que nos sentimos em conflito diário com o status quo. Aliás sua vontade de expandir não se encontra com a grande arte, apenas com uma indústria cultural rasa que não se desprende do consumismo acomodado. Sendo assim, não lhe resta muita opção a não ser aceitar o discurso dominante e se valer do senso comum, em abraço confortável com um grande número de pessoas submissas. Mesmo quando prejudicado pela política dos especuladores e banqueiros, ele se identifica mais com quem lhe suga o sangue do que com sua própria classe, talvez para anestesiar a dor que seria constatar qualquer limite. Questionar o modelo de funcionamento da sociedade, os interesses dos veículos de comunicação, a voracidade dos superricos, os preconceitos normalizados, a parcialidade do Judiciário, em suma todo o fracasso de nossa civilização, nada disso teria lugar em sua mente adaptada, que para não encontrar obstáculos só possibilita questionamentos de acordo com a demanda.

Não descarto por completo a hipótese que mais me choca, a de que ele teria se valido das franjas do poder para cometer pequenas falcatruas. Seria uma explicação plausível para muitas de suas atitudes, mas, ainda não quero acreditar nisso. Até prova em contrário, me interessa mais pensar nele como uma espécie de cúmplice inocente, que só possa ser condenado pela ignorância.

Tudo indica que ele não queria brigar comigo, que só lateralmente percebeu que sua escolha política me desrespeitava como uma ameaça. Talvez, se ele tivesse a humildade de brecar de vez em quando o trem de seus pensamentos, fazer uma autoanálise, conferir seus pontos de partida e repassar o itinerário, se ele conseguisse realmente ouvir os alertas dos poucos amigos dotados de espírito mais crítico, desaprovasse as consequências do rumo que escolheu. Duvido um tanto que ele olhe para o espelho e consiga dizer “Sou fascista mesmo, e daí?”

Até onde sei, ele ainda erige suas racionalizações, discurso pseudomoralista contra a corrupção, medo do comunismo, crença na prosperidade ultraliberal. Óbvio que é na superfície que navegam suas justificativas. Ele foi aprendendo a ser cínico, a empregar truques que lembram os do superjuiz ou do presidente que elegeu, mas creio que para sua mente moldada são pecados menores, perdoáveis como recursos de sobrevivência. Em larga medida também é vítima, foi se comprometendo a tal ponto que ficou tarde demais para recuar, e não lhe restou possibilidade que não fosse aumentar a aposta. Não admitirá nem para si mesmo que agiu mal, atingiu um ponto em que isto significaria quase sua autoaniquilação. Quero crer que em período de paz ele poderia ser amigável até o fim da vida, no entanto o domínio do ódio nos colocou em posições inconciliáveis.

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Ivan Hegen 
nasceu em São Paulo, em 1980. Formou-se em Artes Plástica e tem mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, que resultou no livro Clarice Lispector e as Fronteiras da Linguagem(Benjamin Editorial, 2018). Publicou também A Grande Incógnita(Annablume, contos, 2005), Será (Ragnarok, romance, 2007), Puro Enquanto, (E Editorial, romance, 2009), Rock Book – Contos da Era da Guitarra (org., Prumo, 2011)  e A Lâmina que Fere Chronos (Prumo, 2013), além de artigos para diversos sites e revistas sobre estética e política.