IRMÃO: NOSSO PAI – ADRIANO B. ESPÍNDOLA SANTOS

Irmão,

Esta semana peguei uma carta do papai. Estava numa pilha de coisas à toa, que havia separado aqui para doar; dentro de um bolso – quase-falso – de sua calça jeans. De cara, hesitei em abrir; poderia me chocar – ando fraco estes dias. Como você sabe, papai, afora a “excentricidade” habitual, era afeito a mágoas e afins. No título, convidativo, uma réstia de luz: “O caminho que eu quis para mim”. Imagina… ele, que sempre deixou a vida correr frouxa, desejou, em algum momento, abraçar ideias. Falou de sua dor no sertão, aquele causo todo que já estávamos acostumados a ouvir – não vou nos repetir nisso; da luta atravessada até cumprir a sua missão: nos educar. Aí, exatamente aí, me desmanchei. Julguei que pudesse estar escrevendo para mim, porque o tom tinha um quê caviloso, de pai estrito, circunspecto à vida familiar. Não era de todo mentiroso. Confesso, chorei. Chorei por nós; por ele. A partir desse ponto, atinei: parecia uma carta escrita post mortem; um pedido de desculpas. Não sabia metade daquilo. Sabia, sim, que havia sido arrimo de família, de uma casa de dezoito irmãos – quatorze vivos, como frisava –, e que não teve, em nenhum instante, o amor de pai. Seu pai, o Luís, não chegamos a conhecer, felizmente. Papai discorreu apressado sobre o momento em que foi posto de lado, no dia em que dormiu ao relento, após uma longa caçada; que se enganchou num pé de planta, morto, e acordou, por pouco, agarrado a uma jiboia – foi ela que o permitiu estar vivo; o bafo quente o salvou da hipotermia. Repetiu duas ou três vezes que sustentou a família, todos de bocas arreganhadas esperando que os desse de comer; e não podia ser pouco; e só podia ser manjar. Mal posso suportar, agora, a dimensão da exploração; suas entranhas sugadas e, esfoladas, expostas ao relento, ao deus-dará; nem vida vivida, nem estudos: “Essas besteiras! Menino tem de trabalhar. Suor e sangue no cabo da enxada. Ou vai, ou racha!”, relatou, com essas mesmíssimas palavras, o que ouviu por dezessete anos, quando fugiu. Hoje, entendo o “jargão”: “O menino não se criou. A menina não vai se criar”. Desculpa a falta de fôlego; não consegui elaborar. Não vou tomar mais muito o seu tempo. Sei que chegou de Pequim; que quer mesmo descansar. Mas o essencial preciso te dizer: papai tinha o sonho de ser escritor – quem sabe, daí a perturbação por não ter podido concretizá-lo. E, vê só como são as coisas, hoje o sou. Falam de uma tal memória celular – a ciência assim decodificou; saiu nos jornais. Em suas palavras-pulsação, foi atulhado ou atropelado pela vida regular, convencional. E o mais importante, para concluir: liberou “uns rabiscos”, olha, de cento e poucas páginas, na casa da tia Socorro. Estavam lá maturando, guardadinhos. Fui buscar, no impulso que o sangue quente me jogou. “Que surpresa medonha, meu filho!”. Falou que esperava o momento exato para nos entregar (qual momento?). É isso. Não escrevo mais. Porque as lágrimas me tomam; ondularam até este papel velho. Farei a revisão, a edição, e publicarei o romance com o título provisório: “O amor é um corpo suspenso”, de Tenório de Assis.

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Adriano B. Espíndola Santos
. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.