MARACANàDO BURITI – GRAZIELA BRUM

Eu tô para lhe dizer uma coisa bem certa, se o Doutor me mandasse andar de bicicleta, não iria até a esquina, nunca aprendi, nem vou aprender, mas digo para o Doutor o que é certo, trabalhei no seringal desde os treze anos com meu pai, antes ainda de casar com Osvaldo, finado meu marido. Pois bem, já dei quatro viagens até aqui e sempre a mesma coisa, a mesma resposta. Posso até não ter uma nota de contratado no meu nome, mas o Doutor que pegue a sua bolsa de couro bonita e venha comigo lá no seringal, eu provo, provo pro Doutor que não sou de brincadeira, sei riscar a seringueira, tirar o leite do tronco, brocar no roçado, arrastar a gralha, quebrar castanha na pedra. Vivi assim, de seringueira em seringueira, preenchendo de leite copinho de metal, para bem manejar o látex na produção da borracha.

E tem mais, dia outro, eu mais Inácia, íamos na frente, dando faconaço na folhagem e abrindo caminho pela mata. Por isso, essa aposentadoria é minha de direito e o Doutor sabe disso. Está mais que esclarecido, a papelada junta dizendo que nasci, me criei e trabalhei no seringal toda a minha vida, agora se as providências não provam meus feitos, então, não vejo outra saída, que não seja o Doutor levantar da cadeira e me seguir. Lá na Vila, o Senhor mesmo pode tomar seus registros e depois de ver com seus próprios olhos e tudo comprovar, o Doutor não sai de casa antes de comer da minha boia. Não disse ainda, mas sou cozinheira das boas. Garanto que na cidade não tem nada nem perto da comida que eu faço, tanto que sou conhecida como a Quitandeira Alzira, meu prato de jambuxi fez Osvaldo se apaixonar por mim e nunca mais me largar. Foi assim que foi, e tive um casamento muito feliz até quando ele esteve vivo. Não é longe daqui. Na ribanceira, levo o doutor no meu barco, e chega mais rápido. Não falei, mas navego pelo rio Jarurema faz um tempo danado, era eu que levava nossos filhos e as crianças pelos rios afora para a escola no centro da Vila. Digo ainda mais para o Doutor, se ficar até escurecer, vai ver o que é o pôr do sol da nossa cidade. Coisa mais linda que tem. Vai querer voltar sempre, e comer o melhor prato feito nessas redondezas.

Assim, saí do INSS com meu caso resolvido, Doutor iria à Jandara na outra semana, com todo o equipamento necessário para registrar minhas atividades e de tantas outras mulheres na mesma situação. Marcelina, minha vizinha, não acreditava que um Doutor todo engomado viria ao nosso encontro, “não se vê mais bondade nesse mundo”, repetia em pé, na varanda de casa. “Ele lhe disse que vinha de tanto você insistir com essa aposentadoria”. Não escutei Marcelina, tem horas que é preciso acreditar na bondade dos seres humanos, por isso comecei a organizar a casa para esperar o Doutor do INSS. Passei vassoura no quarto, na sala, na varanda, lavei cortinas, tapetes, almofadas, removi pó dos móveis, dei brilho nas panelas. É casa de pobre, se sabe bem, mas aqui não falta nada. Comecei a planejar na cabeça a comida da semana. Sou mulher prevenida, além do mais, não se sabe ao certo o dia que o Doutor vem. E se viesse logo, melhor deixar tudo pronto.

 

Manso 1

No outro dia, acordei antes do sol se aprumar no horizonte, um maracanã-de-buriti não parava de cantar na minha janela. De certo, queria chamar a atenção de uma fêmea nas redondezas. Eh!, meu Pai, as aves que são felizes, podem passear pelos altos, avistar a comida de longe. São livres. A gente aqui, trabalha no seringal para ser escravo e, no final da vida, ainda tem que implorar para o governo nos dá o nosso.

Uma vez sonhei que era uma ave com dois olhos saltados, até me lembro da cor amarela da cabeça, bem parecida com a cabeça do maracanã-de-buriti. Aí eu era feliz, peava canela no topo da árvore e lá ficava observando o vaivém da mata. Despertei do sonho cantando no ouvido do Osvaldo, ele assustado, crendo que a mulher enlouqueceu de vez. Meu marido era homem bom, camboeiro, levava no lombo de três burros a borracha para o centro da vila. Depois, fazia a negociação na casa central, trocava a borracha por mantimentos. Osvaldo rodeava a estrada com toda a segurança. Foi assim que compramos o melhor cedro e pau-marfim para construir a nossa casa. Osvaldo passava nas andanças, era sabido, mas mesmo assim fizemos dois filhos. O erro foi que trabalhando daquele jeito, nunca fomos ao cartório registrar a união. Agora o tal documento fazia falta.

O Doutor disse que se tivesse a certidão civil da união do casal me dava a aposentadoria na hora. O papel era importante para provar ao governo que eu estava dentro da lei e que era merecedora do benefício do INSS. Coisa muito triste isso, chegar até aqui nessa situação. Levei mais de mil papéis provando que tive dois filhos com o Osvaldo, agora vê se isso é justo, ter que comprovar que fui eu mesma que pari meus próprios filhos, e ainda garantir que Osvaldo é o pai. Levei as certidões dos dois moleques, homens agora, um mora na cidade grande, os netos criados, mas veja isso, os papéis de nascimento dos meninos não dizem nada para as leis do governo. Não mostram que trabalhei minha vida inteira e que nem depois de parir os meninos eu descansei. Enrolava os moleques num pano de fibra vegetal e arrastava eles nas costas ao seringal. Tive até um sangramento de tanto esforço, agora vê se pode, tudo que tenho como prova da lida não serve ao governo. Uma coisa é certa, nada adianta lamuriar, o Doutor prometeu resolver o problema e vai resolver. Nada pode mudar isso.

 

Manso 2

Ainda antes de acordar, escutei um barulho oco vindo lá de fora. Era a chuva. Pingos grossos caíam sobre a terra e soltavam estalos secos. Levantei num suspiro, preocupada que aquele sonido provocado pela água não me deixasse escutar o telefone rural instalado ao lado da varanda de casa. Plantei-me ao lado do aparelho, verificando, de quando em quando, se dava linha. Não é surpresa que a comunicação telefônica fique cortada em dias de chuva, ainda mais com os rios voadores da Amazônia que de uma hora para outra trazem aquele aguaceiro.

Imaginei, com um dia feio daquele jeito, que o Doutor não viesse, mas também não poderia afirmar se ele era um homem cumpridor ou mudava conforme as circunstâncias. Poderia já ter combinado no departamento do governo que prestaria serviço de campo, e para não desfazer seu empenho, mesmo com a chuva, viria. Talvez não tardasse a ligar, dizendo que em trinta minutinhos estaria na ribanceira e que fosse buscá-lo.

Logo que o horizonte se abriu, Marcelina apareceu trazendo um bolo de tapioca e uma garrafa de café, me pegou ainda de camisola e chinelo de dedos. Fiquei feliz em vê-la, porque além de companhia para o café da manhã, Marcelina poderia se sentar de guarda ao lado do aparelho para que eu fosse ao banheiro. Precisa lavar o rosto, escovar os dentes, trocar de roupa… Enfim, um novo dia nos esperava. Ainda antes de voltar a casa, verifiquei, por garantia, se o aparelho funcionava. Estava tudo bem.

Marcelina insistia que eu estava louca, me dizia para que eu não tivesse tantas esperanças, que o Doutor talvez não viesse. Eu trocava de assunto e perguntava se ela sabia notícias da família. Se a neta tinha ido bem na escola, se estava crescida, essas coisas que duas avós corujas proseiam. Ela se animava e me contava sobre as notas da menina, orgulho da família. Mantinha um olho nela e outro na chuva que não arreava de jeito nenhum. Lá pelas tantas, vi que o Doutor não ligaria mais naquele dia. Fiquei tranquila, queria mesmo terminar os preparativos da sua chegada. Colocar sobre a mesa um cesto muito bem feito de palha de milho com frutas frescas e também as toalhas engomadas no dia anterior.

 

Manso 3

Um burburinho me acordou no meio da noite. Tive a nítida sensação que muitas pessoas cochichavam dentro do quarto. Fiquei em silêncio, com a cabeça afundada no travesseiro, prestando atenção no que era aquilo. O rumor aumentava, cheguei a pensar que estavam sentados na minha cama. Com medo, não fiz nenhum movimento e fechei os olhos na ideia de me fingir de morta. De repente, distingui, em meio aquele tumulto noturno, a voz do meu falecido marido Osvaldo. “Zira, seu sonho está perto”. Meu sangue gelou, e imaginei que ele estivesse ali para me levar para o outro lado junto dele.

Paralisei, e acho que dormi, e dormi muito. Despertei passado às nove da manhã com a Marcelina batendo na porta de casa. Levei aquele susto, no mínimo o Doutor tinha ligado e ela sem saber o que dizer desligou na cara do sujeito. Corri para atendê-la, mas ela estava apenas preocupada comigo já que não costumo acordar depois das sete da manhã, me disse que o telefone não havia tocado nenhuma vez.

Fazia um dia ensolarado, as galinhas zanzavam pelo pátio à procura de uma minhoca fora da terra. Contei à Marcelina sobre a visita de Osvaldo na madrugada e o que havia me dito. Ela permaneceu calada por um bom tempo, depois me falou de um advogado indicado pela sobrinha. Peguei o número do telefone para não desgostar minha amiga, ela não tinha entendido o recado de Osvaldo. A aposentadoria iria sair logo logo.

Depois do almoço, resolvi me deitar um pouco por causa das dores nas costas, uma noite maldormida dá nisso, ainda mais quando se trata de uma mulher na minha idade. O Doutor, pelo visto, não viria mais aquela hora, mas eu confiava. Até o Osvaldo, que estava em outra, confirmava.

 

Manso 4

Fiz o tambaqui assado no forno a lenha. Em três dias, mesmo na geladeira, a carne começa a perder o sabor. Não tinha como a melhor peixada da Vila perder sua fama para esperar a vinda do Doutor. Chamei Marcelina, Doralina e Lourdes, todas vizinhas com os maridos mortos em conflitos de terra na Amazônia. Foi um domingo divertido de nuvens espumosas. Os galhos farfalhavam e os piriás rondavam a casa. A prosa cerrada, uma querendo falar mais que a outra, ainda mais depois de uma cachacinha demel e umbu para atiçar o apetite. O telefone não parava de tocar.  É no domingo que os parentes de longe ligam para saber notícia dos familiares. Não me preocupei, sabia que nenhuma chamada daquelas era o Doutor, afinal, não tem expediente domingo.

Por volta de umas quatro horas da tarde, um maracanã-de-buriti pousou sobre o gancho do telefone. Ali, da varanda fiquei observando o movimento que ele fazia. A cabeça amarela mexia para os dois lados, as penas se encrespavam e o bico aquilino, uma vez lá que outra, bicava o telefone. As mulheres proseavam sem parar, entretidas nas histórias antigas do seringal, nem notaram a presença da ave. Eu fingia prestar atenção no que as comadres diziam, mas estava mesmo era interessada no maracanã-de-buriti, me veio à cabeça mais uma vez a ideia de ser ave. De deixar bem lá atrás a vida arrastada que tive, plantada à terra, na luta de sol a sol para sustentar os nossos e seguir a bater asas por aí, sem necessitar de mais nada do que um galho de uma boa árvore para repouso à noite. Quanta distância aquele bichinho percorria, quanto lugar bonito devia conhecer. O maracanã parou a me cuidar e eu a encarar o bichinho, cada um do seu lugar. Ali, entendi que a natureza pede um destino diferente, cada um, nesse mundo, é o que é e o que Deus manda.

De repente alguém me pergunta do Doutor. “Será que vem amanhã?” Levantei recolhendo os pratos e organizando a louça da mesa para servir o doce de mangaba feito por Dolarina. Depois da sobremesa, as comadres logo foram embora. Fiquei ali deitada na rede vendo o domingo se esvaecer, proseando com comigo mesma, tentando saber mais do futuro do que ele permite saber.

 

Manso 5

Sentia-se um sopro diferente. Aquele vento que trouxe a chuva já tinha a levado embora. A Vila toda em silêncio, eram ainda sete horas da manhã e o dia já acordara. Tinha fome e pensei na macaxeira cozida do almoço de domingo. Era de se provar um pedaço para ver se ainda estava boa como no dia anterior.

Abri a janela para uma rajada de ar refrescar o quarto. Vila Jandara na quietude que só se consegue no amanhecer, porque mesmo na madrugada dá para escutar uma criança chorando ou um bicho fazendo algazarra. Eu me sentia bem, havia dormido como uma onça bem alimentada, nem me lembro se mudei alguma vez de posição na cama.

Dali da minha casa, vi mais uma vez, o maracanã-de-buriti. Dessa vez ele não ficou, apenas pegou umas frutinhas e seguiu caminho. Eu também resolvi correr para cozinha para tomar meu café da manhã. Foi aí que escutei o telefone tocar, mas eu estava com muita fome, então preferi comer primeiro e deixar a pessoa desistir ou deixar um outro morador da vila atender ao telefone.

_______________________
Graziela Brum
 é de Arroio Grande/RS. Escritora. Idealizou o projeto literário Senhoras Obscenas, o qual coordena junto com a historiadora Adrianá Caló. Participa do coletivo Escritorxs de Quinta, venceu o concurso ProAc categoria romance com o texto “Fumaça”. Publicou com Editor Lumme “Vejo Girassóis em você”. Atualmente escreve o romance Jenipará. Fumaça é o texto de Graziela Brum que venceu ProAc na categoria romance. Em breve, será lançado pela Editora Patuá.