O solidário não quer solidão
Milton Nascimento/ Fernando Brant
Tinha que cuidar do velho. Queria? Não. Mas o outro mandava, o que o outro mandava – fazia. Tinha medo. Aqueles olhos severos de raiva ainda não dada. Cuidava enquanto ele saía, boas farras. Desde quando se dera? Nem se dera conta. De repente estava ali. Naquela casa escura, cuidando do homem lá em cima, na cama, sem poder andar. Junto com ele aliado, com ele inválido. Na mesma certa hora, limpava as necessidades que o velho fazia, já da cama não arredava. Que se não logo fosse, o odor descia os degraus e infestava a casa num só golpe. Depois tinha que dar banho com água morna. Na boca enfiar a comida que se negava – o idoso homem – a comer. Come, come, dizia já se abusando da paciência própria.
Às vezes ele vinha, o outro, cansado das lides ou das libidinagens. Vinha sem dizer palavra. Mandava sem falar. O menino então se escondia. O velho mais paralisado ficava na paralisia já irreversível. O outro vinha e olhava. Pouco, é verdade. Seus olhos escuros. Despia-se. Tomava banho. O menino espiava. Estranha a mancha nas costas – como a do velho – na forma de coelho quando corre fugindo de atrasado. Depois o menino se afastava, medo de levar ralho. Como tudo andava em ordem, logo voltava pra rua. Pegava a chave, que sempre deixava em cima da mesinha ao lado da porta (isso o menino sempre reparava) e ia embora. Que luz estranha aquela que de fora vinha quando a porta se abria por poucos instantes e o menino via com certa saudade nem sabia de quê.
Ordem havia, mas só por cima, no pousar dos olhos. Que o menino nada podia fazer para controlar certas coisas. Como as goteiras e o barulho de corre-corre de ratos no porão. Se apurasse com mais rigor, o outro logo veria o trabalho danado de ruim que era feito e como o velho era cuidado – no qualquer jeito.
E ia mal, o velho. Nem sabia o menino se ele enxergava ainda, nada dizia, nem parecia acompanhar os movimentos que o garoto fazia quando preparava seu banho de panos mornos. Botando panos quentes. Ouvir, ele ouvia, pois levantava a cabeça quando a porta se abria – enguiçada porta de antiquárias dobradiças, quase emperrada.
A casa era muito velha, mesmo. Cada dia mais tudo decaía. A luz faltava, por vezes. Nesses dias de inesperados breus, o menino corria pro canto do seu quartinho, ali ficava sozinho e chorando – medo do escuro; é o que tinha.
O outro – o mandão dos mandões – fazia cada vez menos visitas. Tinha horror do velho. Mesmo nojo. Bom e ruim pro menino. Verdade que temia o outro, mas que tristeza estar sempre assim sem ninguém a não ser o estupefato ancião sem ânsias.
Pouco durou, porém, tal ordem de castigo. Cansado que estava de ser cativo e sem nem mais poder esperar fuga, aí que a coisa se fez sem que planejasse. De repente, por conta dos alongados anos, o velho morreu. O outro chegou para velar o defunto: de terno escuro, lá foi ele fechar os olhos do morto, não tivera coragem para tanto o menino. Enquanto o outro fazia silêncio e admirava com estranho luto o corpo que logo se apodreceria em nenhuma memória, o menino aproveitou para correr escadaria abaixo. A chave na mesinha, como sempre. Uma chuva caía, ouvia desde cedo, as goteiras não mentiam.
O outro tentou ainda correr, depois de notada a ausência, atrás do pirralho. Nada conseguiu. O piá ligeiro colocou a chave e destrancou-se pro mundo. O outro agarrou sua camisa de frágil tecido – rasgou-se. Que importava. Assim de peito desnudo se foi na chuva que caía molhando com alegria, alegria. Nem olhou pra trás pra ver o outro ali parado de negro luto, recortado contra a luz que vinha mortiça de algum fundo muito fundo, como se viesse do quarto do velho já passado.
Foi correndo. De novo, um menino. A chuva lavando a pele empoeirada. A água escorrendo pela mancha nas costas: em busca do perdido tempo – um coelho.
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Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Tem dois livros publicados Samba no escuro (2013, Scortecci) e A repetição dos pães (2017, Editora 7Letras).
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