Isso foi em outubro. Naquele fatídico segundo turno. Já tem quase uma década que moro em São Paulo, mas, por algum desses motivos que só a psicanálise explica, ainda não transferi meu título. Naquele segundo turno, parcelei uma passagem de ônibus até Minas, em três vezes, para conseguir votar. E o resto da história vocês já conhecem.
Mas eu gostaria de contar outra coisa. Uma coisa que aconteceu na viagem de volta. Uma poltrona à frente, na fileira à minha direita, estava um homem de uns quarenta e tantos. Roupas pretas, barba branca e camiseta de banda, bota com fivela. Um desses roqueiros cafonas, meio fora de época, meio fã de Rolling Stones, meio fã de maracatu.
Eu tentei dormir algumas vezes, mas como estava de ressaca – tanto pela cachaça como pela vitória de Bolsonaro –, comecei a reparar no sujeito. Estava no whatsapp, numa digitação frenética. Nada de mais. Mais então a coisa ficou estranha. Iniciou uma chamada de vídeo. E de repente, apareceu uma mulher de toalha, depois nua, dentro do banheiro. Dançando. O cara então se levantou. Passou em direção ao banheiro do ônibus. E ficou lá trancado por vinte minutos.
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Descubro, tempos depois, que o nudes de banheiro é um clássico contemporâneo da infidelidade. Os aplicativos de mensagens e as redes mudaram nossa relação com o mundo. Colocam governos em crise, manipulam eleições com fake news, ajudam na construção de um julgamento injusto, como nas recentes revelações do The Intercept – e também potencializaram e sofisticaram os desejos e a prática da traição. Tanto do CONJE, como do país.
Dia desses, quando encontrei um amigo que se separou, perguntei como ele estava. “Estou ótimo”, ele disse. E me mostrou um verdadeiro álbum de fotos íntimas de mulheres, algumas solteiras, outras casadas, com quem ele vinha se relacionando pelo WhatsApp. Ele me confessou que estava se tornando um viciado em sexting.
Uma das coisas que o deixa bastante excitado era se esconder no banheiro da firma e enviar imagens para algum crush durante o trabalho.
Se antes o emocionante era ir no motel no meio da tarde, agora a adrenalina é enviar fotos de cueca no banheirinho da firma.
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A hiperconexão não trouxe apenas mudanças quantitativas (velocidade, fluidez das relações, saturação de contatos), mas mudanças qualitativas. Alguma coisa se rompeu nos últimos anos, alguma coisa que ainda não entendemos muito bem. A crise democrática é inseparável dessa virtualização da experiência. O mundo que nós nascemos e crescemos acabou, mas o novo mundo ainda não apareceu.
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Lembro de uma cena do filme do Mazzaropi, do qual não recordo o nome, em que o Jeca, ao chegar na cidade, começa a cumprimentar todo mundo que encontra na rua. Inicialmente hilária, a ingenuidade do caipira diante da experiência da metrópole provoca uma grande vertigem.
Transportando essa experiência para as redes sociais, para cada um dos nomes no WhatsApp, não é difícil se identificar com esse ingênuo caipira. Mas há uma diferença: quando as mensagens se acumulam, quando visualizamos e não respondemos, essa carga de mensagens pendentes, que só cresce, gera culpa. E pode até mesmo gerar um certo adoecimento: de cabeça baixa, não prestamos atenção ao redor.
Então, de repente, aplicativos que foram criados para tornar as coisas mais rápidas e ágeis, ou seja, nos dar mais tempo de sobra, consomem todo nosso tempo. O tempo dos nossos filhos, o tempo de leitura aprofundada, o tempo do cinema e do teatro, o tempo do próprio ócio, do sexo e do amor.
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Ainda não sei como a literatura vai incorporar essas questões. Sei que são incontornáveis. Talvez algo na linha distópica, como Black Mirror, talvez algo mais leve, numa releitura do Mazzaropi. Ou talvez ainda surja um Woody Allen desses tempos, um Orwell, e consiga captar e dar forma a esses novos afetos.
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Marcos Vinícius Almeida é escritor e jornalista.