O PARQUE DOS RATOS – MÁRCIA BARBIERI

Não. Não éramos frutos do mesmo ventre. Não éramos produtos da mesma discórdia. Não dividíamos o mesmo pão ao acordar. Não estávamos fadados ao mesmo fracasso. Cada um fracassaria de um jeito singular e por sua própria ignorância. Tínhamos dois pés, duas mãos e uma cabeça ovalada. Isso não era uma espécie de sintonia¿

Enquanto eu lambia a sua mão (sim, eu possuía essa mania submissa que me igualava aos cães mansos e de pequeno porte), você me disse com sinceridade indiscutível: eu gosto da sua companhia. Sim, aquilo deveria bastar, era prova incontestável de que as coisas estavam apodrecendo no seu devido tempo.

Eu não respondi, permaneci calada, mas pensei, um cão é uma boa companhia, embora seja destituído de fala e possa ser confundido com qualquer cão da matilha. Um gato também é uma boa companhia, mesmo não fazendo outra coisa senão enterrar a própria merda. Há certo aspecto de força nesses animais que não se comovem nem choram suas dores. No entanto, eu constantemente chorava, porque almejava uma compreensão inexistente.

Como compreender um homem que vivendo em uma cidade repleta de prazeres prefere viver enjaulado¿ Não saberia responder, nunca cheguei a uma conclusão razoável sobre a estrutura do pensamento dos homens. Poderia dissertar sobre as funções de cada um dos seus órgãos, porém, isso seria pouco satisfatório para as minhas dúvidas.

Existe na alma humana um vazio impossível de ser preenchido. Qual homem preferiria água à morfina¿ Somos uma espécie atormentada pelos pensamentos e pela linguagem, não é possível sobreviver sem anestesias. Um pássaro nasce para voar, uma cobra para rastejar, uma aranha para tecer. E os homens¿ Como explicar a dimensão de suas tragédias¿ Quantos membros precisamos para fracassar¿

Realmente não sei… Eu te olho e você dorme enquanto eu me viro na cama. E na minha insônia incurável eu penso sobre a semelhança entre a gestação lenta dos homens e dos elefantes. Sim, cada um fracassaria de um jeito singular e por sua própria ignorância.

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Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979.  Formou-se em Letras (Port-Francês) pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta (Terracota, 2014) e O enterro do lobo branco (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018. O romance A casa das aranhas será lançado no final do ano. Conto em homenagem aos personagens do romance A CASA DAS ARANHAS. Para saber mais clique no link: Pinot Noir Literatura