O PEQUENO ATEU – TIAGO GERMANO

Fui ateu aos oito anos.

Foi assim:

No princípio, Deus nos deu o carro.

O carro tinha um adesivo Foi Deus que me deu; então Deus, agradecido, resolveu nos dar também a casa.

A casa era sem forma e vazia, mas tinha uma Bíblia e uma Barsa na estante; então Deus, piedoso, resolveu nos dar também a tevê.

E disse Deus: Haja luz; e houve luz – exceto quando o Pai esquecia de pagar a Saelpa e os apagões, que eram bastante comuns no interior, nos deixavam completamente no breu. Mãe nos reunia em volta da mesa e era obrigada a queimar todas as velas da gaveta, inclusive as de sete dias que eram grossas mas não iluminavam nada.

E viu Pai que a tevê era boa; então a Bíblia, a Barsa e todos os demais livros da estante perderam a graça e passaram a ser apenas enfeites para as visitas. Nós podíamos assistir ao Pica-Pau até o horário do jornal, mas ai de nós se Pai chegasse e ainda estivesse no SBT porque aí seria um Deus nos acuda, Sua ira se abateria sobre nós e iríamos dormir mais cedo – perdendo a novela da Globo e também o finalzinho de Pantanal na Manchete.

No castigo, eu ia dormir rogando ao Senhor Deus que fizesse cair sobre mim um sono pesado e que, enquanto eu sonhasse, coçando as costelas ainda marcadas pela fivela do cinto de Pai, fizesse a Juma aparecer para mim sorrindo. Quase sempre funcionava, e ambos ficávamos nus – Juma e eu – no sonho, e não nos envergonhávamos disso.

Eu era apaixonado pela Juma do Pantanal. Eu deixaria Pai e Mãe pela Juma, e desconfiava que Pai também seria capaz de deixar Mãe pela Juma – e pela Xuxa, e pelas garotas do Fantástico que eu não gostava de assistir perto d’Ele. Uma vez por semana, víamos Pantanal comendo maçã. Era a única fruta de supermercado que podíamos comprar e Mãe então comprava: uma para cada um, e assim distribuía na ceia. Meu pai era mais astuto que eu e que os meus irmãos e sempre ficava com a maior, comendo primeiro. Dizia Mãe: Não comereis também as deles. Pai tomava a minha da minha mão ou a do meu irmão da mão dele e dava uma grande mordida. Nós chorávamos. Ele ameaçava nos bater. Não batereis neles para que não morrais, Mãe dizia. Cala a boca, mulher, eu bato neles se eu quiser.

E certamente não morreria o Pai.

Eu ia dormir me perguntando se Pai também pedia a Deus para sonhar com a Juma.

E aconteceu ao cabo de dias que eu resolvi querer a Juma só para mim. Eu me tranquei no banheiro e fechei a porta do box e sentei na privada e disse: Deus, fazei a Juma aparecer embaixo do chuveiro ou morrereis para mim. Fiquei alguns minutos esperando com os olhos fechados sentado no bojo e depois abri o box e não havia Juma nenhuma. Tornei a fechar o box e tornei a esperar com os olhos fechados sentado no bojo e tornei a repetir: Deus, uma segunda chance. Nada de Juma. Terceira chance. Nada. Saí do banheiro desiludido e decidi que, a partir daquele dia, Deus estava morto para mim.

Na escola, ouvi dizer que Ramon fizera um pacto com o Diabo. Procurei Ramon e perguntei se eu não podia fazer também o mesmo pacto. Ele perguntou por que e eu fiquei envergonhado, mas expliquei a situação. Ele riu e disse: Imagina se Deus te mandasse a Juma e você abrisse a porta e ela estivesse transformada numa onça. Eu não havia pensado nisso mas mesmo assim. Perguntei por que Ramon continuava frequentando o catecismo se tinha feito um pacto com o Diabo. Ramon respondeu que só frequentava o catecismo porque todas as meninas gostosas da escola também frequentavam, e se eu fosse esperto eu também passaria a frequentar a partir de agora. Eu passei a frequentar mas nenhuma menina da escola era mais gostosa que a Juma de Pantanal. Voltei a perguntar a Ramon como ele havia feito um pacto com o Diabo mas ele se recusou a dizer. Comecei a desconfiar que ele estava mentindo.

Quando Mãe descobriu que eu ia ao catecismo com Ramon ela disse: Não andais com tal menino ou morrereis. Perguntei por que e Mãe disse que o menino de Cida era o próprio Demônio encarnado. Pensei então que não precisaria de um pacto com o Diabo se eu tivesse um pacto com o Ramon. Perguntei se ele não cortaria a mão com um canivete e aí eu cortaria também a mão com um canivete e nós apertaríamos as mãos e então seríamos irmãos de sangue para todo o sempre. Ramon rejeitou a ideia. Disse que aquilo era coisa de bicha e além do mais dava Aids. Optamos pelo cuspe e sacudimos as mãos selando o nosso pacto. Ramon e eu viramos irmãos de cuspe.

Na igreja no domingo, Ramon disse: Vou te mostrar uma maneira de fazer dinheiro fácil. Quando a cestinha do ofertório passou por nós Ramon enfiou uma mão com uma moedinha de cruzeiro. Quando voltou a abrir a mão, algum tempo depois, em vez da moeda tinha no lugar uma nota. Disse Ramon: É fácil, na próxima semana é você quem faz. Comemos cada um dois cachorros quentes com guaraná e ainda sobrou troco da nota que Ramon pegou.

Voltei para casa com a barriga cheia de culpa.

Domingo era o único dia que não passava Pantanal. Na hora da garota do Fantástico, meu pai colocou a mão na minha coxa e perguntou: Qual delas, meu filho? Me senti enjoado e vomitei no banheiro. Minha mãe perguntou o que eu havia comido para vomitar tanto milho verde com ervilha. Eu disse que um amigo que não era o Ramon me chamou para lanchar depois da missa e pagou o meu lanche. Ela disse que na próxima semana daria o dinheiro para que eu retribuísse e eu pensei que com todo aquele dinheiro eu talvez conseguisse o dobro na cesta do ofertório, e com o dobro do dinheiro eu comeria o dobro de cachorros quentes – e provavelmente vomitaria também o dobro depois. Não foi uma ideia muito consoladora.

Não sonhei com Juma, mas com Ramon enterrando a estátua de Cristo da igreja no campo de aviação. Eu tinha uma foto aos pés daquela estátua, oferecendo uma flor que eu obrigava Mãe a colher todo santo dia, sempre que passávamos pela praça. No sonho, eu segurava uma flor e tentava impedir Ramon de enterrar a estátua. Ramon me empurrava, me chamava de bicha e dizia que aquele era o pacto. Depois se transformava no Diabo e eu acordava gritando. Tive medo que Pai também acordasse e batesse em mim. Em vez de Pai veio Mãe, me trazendo um copo d’água e dizendo: Não lanchem mais naquele trailer. Da próxima vez vão no Chefinho que lá o sanduíche é melhor.

Não fomos ao Chefinho na outra semana. Nem ao trailer, nem à igreja, nem a lugar nenhum.

Ramon também chegou em casa enjoado, vomitando e reclamando de uma dor muito forte na barriga. A mãe dele pensou que fossem os cachorros quentes e demorou para levar ao hospital. Ramon morreu com o apêndice supurado na ambulância, a caminho de Campina Grande.

Trancado no banheiro, eu ouvi a conversa dos meus pais depois do telefonema. Disse Pai: Que Deus o tenha mas o filho de Aparecida era uma peste. Mãe disse: Peste era, mas não merecia morrer desse jeito.

O velório foi na escola e Ramon foi enterrado com o uniforme. Todos nós na fila para ver o corpo também estávamos com o uniforme. Da escola seguimos em procissão até a praça, onde o trailer estava aberto, embora não tenha vendido um só cachorro quente. Passamos pela frente da igreja e de lá fomos até o cemitério. No enterro dona Cida, a mãe do Ramon, gritava Por quê, meu Deus, por quê, e talvez pra abafar os gritos alguém começou a cantar Segura na mão de Deus e todos passaram a repetir Segura na mão de Deus, e vai.

Eu me perguntava se Deus cuspisse na mão e se Ramon cuspisse na mão e se ambos se dessem as mãos então Ramon poderia ir pro Céu, e eu talvez pudesse também ir, já que era filho de Deus e irmão de cuspe do Ramon.

Uma semana depois faltou energia e todas as velas tinham acabado, inclusive as de sete dias que ficaram acesas para Ramon, na frente da Bíblia, mesmo quando tinha luz, e finalmente Mãe me explicou por que aquelas velas eram chamadas de sete dias e por que afinal eram tão grossas.

Antes de dormir eu perguntei pra Mãe o que eu podia fazer para não ser castigado e morrer e ela disse que infelizmente todos morriam, essa era a lei de Deus mas eu era ainda muito jovem e ia demorar para acontecer comigo o que aconteceu com Ramon, porque o que aconteceu com Ramon foi uma fatalidade, não tinha nada a ver com o fato de ele ser bom ou ruim e que se Deus quis que assim fosse era porque era assim que tinha que ser, era porque Deus tinha um plano maior para ele, tudo que nós vivos podíamos fazer agora era rezar, para os vivos mesmo mas sobretudo para os mortos, para que Deus cuidasse de nós aqui na Terra e acolhesse a alma de Ramon lá no Céu.

Mãe me deu a Benção e eu fechei os olhos. Tentei pensar em Juma mas tudo o que me vinha à cabeça era Ramon de uniforme, morto, estirado num caixão repleto de flores.

Naquela noite eu rezei muito. Rezei por Pai, Mãe, meus irmãos e por mim. Rezei sobretudo por Ramon.

Naquela noite, aos oito anos de idade, eu voltei a acreditar em Deus.

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Tiago Germano é autor do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018) e do volume de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.