À amiga negra
Que eu não tive na escola.
Uma vez erguida, nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar.
Franz Kafka, Narrativas do Espólio.
É a terceira mudança em menos de dez anos, mas, como nas outras, quando me creio já acostumada a mudar de casa e que basta vencer a preguiça de encaixotar tudo de novo ― as tralhas que constituem minha posse diminuem a cada vez ―, percebo que aquilo não se resume a simplesmente passar a viver em outro ambiente. As semanas em que a casa antiga está de pernas pro ar, esperando ser deixada para trás, seguida das outras em que a nova ainda não adquiriu o estatuto de lar, são como pedras na linha do tempo da minha vida, lançadas ali pela angústia da falta de rotina, e se me sinto perdida sem reconhecer onde moro e anseio por me sentir em casa outra vez, esse estado, embora terrível, dá vislumbres de ser mais verdadeiro que o hábito do dia a dia. A rotina, quando volta, demora ainda a perder a aura de fragilidade, até de farsa; e acostumar-me ao novo lugar, à nova vida, se por um lado é um alento, por outro me distancia daquelas pedras, aqueles nós. O tempo que passa me faz esquecer das caixas com os objetos de que não consegui me desfazer em nenhuma das mudanças anteriores, e eles voltam a juntar pó em algum buraco esquecido da nova morada.
Mas dessa vez vai ser diferente, penso, diante da caixa de papelão escondido por uma camada grossa de poeira. Talvez eu possa me desfazer dela sem ao menos a abrir: morei aqui pelos últimos quatro anos, e em nenhum momento senti falta do que quer que esteja aí dentro. Mesmo sabendo do risco de deixar de lado as tantas coisas esperando serem encaixotadas para me deter por horas diante de lembranças inúteis, a curiosidade fala mais alto e, quando vejo, já estou com a tesoura cortando a fita adesiva já meio sem cola, fixada ali a última vez em que mudei de casa, quando o futuro prometia ser longo e feliz ao lado de Fábio.
Espirrando ― não sou alérgica a pó, mas a quantidade que se desprende das abas agora soltas é imensa ―, vislumbro papéis velhos, envelopes, pastas, alguns brinquedos antigos (um xilofone enferrujado, uma boneca de plástico sem o braço esquerdo, algumas peças coloridas de montar), cadernos usados e uma caixa de madeira avermelhada. Afasto os papéis que a recobrem e pego a caixa nas mãos. Balanço-a, observando os detalhes em bronze nos quatro cantos e o aplique circular de pedra no meio (será jade?), mas não ouço nem sinto nada se movendo ali dentro. Abro o fecho um pouco emperrado: sobre o tecido acolchoado vermelho não há nada. Minha memória não alcança coisa alguma diante daquele objeto, embora, aparentemente de outro lugar, como se me lembrando de um sonho, me venha a imagem da primeira escola em que estudei, desde o jardim da infância até os doze anos.
Puxo uma pequena língua de tecido em uma das laterais da caixa e o tampo se desprende, revelando o fundo também vermelho. Sobre ele, único, antigo, um fio de lã marrom.
Nunca terminei o primeiro volume de Em busca do tempo perdido, mas cheguei até a parte das Madeleines. Talvez boa parte dos leitores também tenha chegado só até aí, pois a maioria das citações sobre o livro se referem apenas a essa passagem, o tempo voltando em um jorro a partir do sabor adocicado da infância.
No meu caso, no caso do fio de lã marrom, se houvesse um sabor, ele seria amargo.
Claudiana saiu da escola, do país, do meu mundo, quando ambas tínhamos nove anos. Eu era exatamente dois meses mais velha que ela; e foram também dois meses o tempo entre a notícia de que ela iria embora e sua partida.
Minha mãe que me contou. Talvez prevendo a reação ruim de uma menina ao saber que perderá a convivência com a melhor amiga, a mãe dela falou com a minha, e agora me vem nítido na lembrança o fim de tarde em que, sentadas no sofá azul da sala, tivemos nossa primeira conversa séria, minha mãe e eu. E Dora, a minha boneca de pano, que vai saber lá onde anda, se é que ainda existe e não se desintegrou: na caixa de papelão empoeirada, não está.
Dora estava sentada no meu colo, e eu, com as pernas cruzadas, de frente para minha mãe. Às vezes a vida das famílias, das pessoas, toma outros rumos, e o pai da Claudiana teve um problema, o trabalho dele, mudança de trabalho, perigo, e as palavras vêm soltas como o fio de lã marrom que seguro entre o polegar e o indicador.
Embora.
Ela vai ter que ir embora.
A ideia de nunca mais ainda não existia para mim, se é que existe de fato para alguém em algum momento da vida: não a suportamos, precisamos da vidinha e do amanhã e do sempre, e mesmo quando alguém morre não conseguimos fazer perdurar a ideia da ausência eterna. Talvez por isso a morte nos jogue de repente em um abismo no qual, embora ecoe depois, é impossível permanecer. Ou talvez eu achasse que seria só por um tempo, ou foi o que minha mãe tentou dizer para mim.
Mas não, nós não acreditamos nisso, nem Claudiana, nem eu, como se soubéssemos que ela nunca mais voltaria, que eles morariam fora até que, bem depois, ela e o irmão morressem em um acidente de carro, como se soubéssemos que a notícia da morte dela só chegaria até mim por acaso, quando encontrasse num aniversário qualquer a filha da nossa professora da época, tão igual à mãe que eu achei que fosse a própria, embora não fizesse sentido que ela não tivesse envelhecido nada em vinte anos.
Não acreditamos nisso, pois se tivéssemos acreditado, não trocaríamos fios de cabelo de nossas bonecas dois dias antes de Claudiana ir embora da escola, do país, do meu mundo. Onde estará o fio amarelo do cabelo de Dora? O fio que passou a valer mais que a própria boneca. Existirá ainda em algum lugar? O corpo de Claudiana, já não.
Em quanto tempo um fio de lã se decompõe?
Em quanto tempo um corpo de boneca se decompõe? E um corpo de menina? De mulher? De amiga?
Em quanto tempo uma lembrança se decompõe?
Bem mais tempo que um fio.
Guardo o pedaço de lã no fundo da caixa, guardo a caixa na caixa maior de papelão, fecho-a com fita adesiva nova e a coloco, empoeirada, vedada, em cima da pilha a ser levada para a casa nova.
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Natalia Timerman é médica psiquiatra pela UNIFESP, mestre em psicologia pela USP e escritora. Autora de Desterros – histórias de um hospital-prisão (editora Elefante, 2017) e de Rachaduras, livro de contos a ser lançado em outubro de 2019 pela editora Quelônio. Cursou o núcleo de ficção da formação de escritores do Instituto Vera Cruz.