Odete não notou de pronto. E por não notar de pronto, deve-se inferir que ela não chegou àquela sala, aquela minúscula sala, aquela minúscula e escura sala, de armas em punho, ou ofendida. Ficaria lá para poder operar a enorme máquina de xerox, deste modo, desafogaria os outros aposentos daquele grande monstro tecnológico. Não se sentia vítima de perseguição ou impingida por alguma penalidade. Inclusive, no dia da mudança de sala, ela apertou o elevador em direção ao segundo subsolo, lá só haveria sua sala, como foi informada, e adentrou sorridente. Não havia ninguém e assim ninguém pôde ver aquele sorriso, e nem o momento em que ele se desfez.
Era uma mulher pequena. Mesmo naquele compartimento pequenino ela permanecia pequenina, e isso de alguma forma, a deixou satisfeita. Era uma boneca numa casa feita especialmente para suas proporções. Cabelo liso e vermelho, regularmente escovado, pintado e hidratado continuou dia após dia indo ao segundo subsolo e sentando na cadeira, esperando alguma ligação ou que alguém entrasse pela porta pedindo seus préstimos de tiradora de xerox oficial daquele gigante prédio público. Dia após dia ninguém entrou ou ligou.
Se de início olhava para aquela máquina, aquela enorme máquina, com orgulho, afinal era sua, por causa dela ganhara uma sala, uma sala só para ela e assim poderia exercer todo poder que nunca exerceu ou que nunca teve, ao final do segundo mês. sem nenhuma batida na porta ou chamada no telefone, Odete passou a olhar para aquela máquina, aquela monstruosa máquina, como inimiga. Era culpa dela, por causa dela fora trancafiada naquele lugar, e num lugar em que ela era minúscula e aquela máquina gigante a oprimia e poderia engoli-la a qualquer momento.
Cobriu a máquina de xerox.
Com o monstro coberto, pôde notar, e agora sim, tudo estava claro: aquilo era proposital. Um plano para menosprezá-la, diminui-la. Uma mulher já pequena por natureza, que por ser pequena e ter amoldado suas características a sua diminuta estatura, mal nenhum podia fazer a alguém. Não estava certo. Não era justo. Ela precisava fazer algo.
Ligou para o ex-chefe.
Após chamar algumas vezes, alguém atendeu mas nada falou. Odete insistiu, alô, alô, alô, mas quem havia atendido o telefone esqueceu que se deve respondê-lo. Ela, porém ouvia. Risos. Isso, risos. Eles riam. Todos riam. Deviam saber que era ela que estava no outro lado da linha. Descobriu toda a verdade, tanto tempo depois, afinal o cérebro dela devia também ser minúsculo, deviam dizer, e descobriu que era um plano para mandá-la para longe, ficar longe, não estar mais por ali, não estar.
Desligou.
Os risos ecoaram pelo resto da tarde, pela pequena e úmida sala, mas ela esperou que às 18h chegassem para sair de sua cadeira, fechar a porta e cumprir seu expediente. Uma servidora exemplar mesmo humilhada.
No dia seguinte, não mais pegou o elevador. Não queria ser vista. Não queria que rissem dela. Da mulher pequena de cabelos vermelhos que virou babá de uma máquina de xerox. Da mulher que de tão pequena não fazia falta ou diferença. Indiferença. Desceu os degraus escuros até o segundo subsolo, como previsto, não encontrou ninguém no caminho, Abriu a porta. A sala pequena estava mais pequena ainda. E mais escura. Mesmo ligando a luz, e ligando mais uma vez para ter certeza, a sala continuou escura. As paredes ainda mais úmidas exalavam pessimismo. Num canto ocupando quase todo o espaço, a máquina de xerox suspirou, ainda coberta.
Querendo ser descoberta.
Pedindo desculpas pelo que não fez.
Odete entendendo como ela se sentia, tirou o tecido que a cobria.
A máquina que antes suspirava pesarosa manteve-se calada, com medo de aquela mulher, apesar de pequenina e frágil, a destruísse, pensando ser ela a causadora do ostracismo que acometera as duas. Isso. As duas. Velhas e sem mais uso. Ultrapassadas. Juntas, desterradas numa sala que não fazia mais parte daquele prédio, apesar de fisicamente pertencer à mesma planta.
Juntas e caladas. Odete e a máquina permaneceram assim por mais alguns meses num pacto de silêncio e respeito. Limpava a máquina todos os dias pela manhã, tomava um rápido café em sua mesa, lia as notícias no jornal em voz alta. A cada hora abria a porta e olhava para os lados à espera de alguma visita inesperada, que ela tanto esperava, que nunca veio e nunca viria. Passou a abrir a porta apenas três vezes ao dia, e por fim, a abria apenas para entrar e sair.
Por vezes, a mulher levantava e tirava uma e outra xerox para que a amiga, e aos poucos tornou-se sua amiga, torna-se amiga quando se divide a mesma dor, continuasse se sentindo útil. Quando uma das cópias passaram a sair com falhas e erros, a mulher pequena tomou com pressa a folha para si. Não queria que a máquina percebesse que algo estava errado. Não queria enchê-la da ansiedade que ela mesma já sentia. Não queria contaminá-la. Até que a engrenagem da máquina começou a guinchar pedindo ajuda e não havia mais como esconder.
Odete precisava fazer algo.
Precisava ajudar.
Enfrentaria aqueles calhordas, e não se importaria com os risos ou olhares tortos. Pediria, não!, exigiria! que a máquina fosse consertada e ela pudesse continuar a fazer seu trabalho, sim, ela continuava trabalhando e útil, independentemente do planos deles, o plano falho deles, que esqueceu que apesar de pequena ela era uma mulher forte. Forte. FORTE.
Chegou à antiga sala, após subir dez andares de escada, evitando o elevador, e deparou-se com um grande vazio. Não havia ninguém. Era noite. Todos já haviam ido embora. Que horas eram aquela? Ela já devia ter ido para casa. Há quanto tempo ela não voltava para casa? Não sabia. Estava cansada. Fraca. fraca. Tinha porém que resolver o problema da
Máquina.
Que máquina era aquela? Em meio à enorme sala vazia, notou um item que não existia a sua época. Era grande e imponente. Brilhava orgulhosa de si. Queria ser descoberta. Queria se gabar.
Odete se aproximou e entendeu que ela não era uma máquina de xerox mas uma máquina que digitalizava, tirava cópia, cópias coloridas, conversava com as pessoas, ouvia seus problemas, aconselhava, fazia café, fazia previsões e tantas outras coisas que só uma máquina magnífica como aquela poderia fazer. A mulher pequena aos poucos também foi seduzida, e teria sido fisgada também, como todos os outros foram, e agora ela entendia o que havia acontecido, até que ouviu passos. Era melhor correr dali.
O segurança ligou a luz da sala e teve a impressão de ter visto passar pela porta que levava à escada uma figura pequena e magra de cabelos desbotados. Benzeu-se.
Odete voltou para sala e se trancou. Não contou nada à máquina de xerox. Não queria magoá-la. Pior. Não queria que ela suspeitasse que mesmo que por milésimos de segundos também se sentiu atraída pela magnífica máquina e quase a usou, tirando cópias e fazendo confidências como se faz a uma nova melhor amiga. Não.
Usou a pouca força que tinha, e ao usá-la percebeu que sua força não era muita, para arrastar o armário em direção à porta. Era sua forma de defender a si mesmo e a sua amiga. Proteger-se. Não mais sofrer.
Odete continuou dentro da sala que com a porta trancada passou a ser uma prisão. Uma prisão invertida. Um castelo.
Vez ou outra, tirava uma cópia de páginas avulsas na máquina de xerox que cada vez mais guinchava, sedenta por óleo, sua maquinaria engessada e cansada, enquanto a mulher pequena contava sobre coisas do passado e do futuro, tentando entretê-la e assim fazendo esquecer suas dores e lamentos. Nenhuma das duas esquecia.
A máquina desi
– Você não pode desistir.
A máquina desist
– Você não pode desistir.
A máquina desistiu.
Guinchou, tremeu e por fim, ao sair uma fumaça de sua traseira, Odete entendeu que nenhuma história mais entreteria e enganaria sua amiga. Não desistiu, não, sabia que não. Cedeu. Não havia mal nenhum em ceder. Cobriu pela última vez a máquina com um tecido em respeito, em luto. Aceitando.
Sentada na cadeira, Odete continuou. Lia os jornais antigos em voz alta, misturava frases e notícias criando novas notícias, por não saber o que se passava lá fora. Quando o expediente acabava, levantava-se da cadeira, tirava o relógio da parede adiantava para às 8h do dia seguinte e voltava à sua cadeira. Recomeçava.
Não mais esperava que batessem a porta, ou ligassem para o telefone. Apenas continuou sentada. O cabelo não mais pintado ou penteado, foi desbotando cada vez mais até se tornar o que era, branco. O corpo foi se tornando ainda menor, e se apequenando, se apequenando como quem se protege para não sentir dor. Não tinha, entretanto, medo de se apequenar. Não tinha medo. Não iria ceder.
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Gael Rodrigues é paraibano de 33 anos. Seu romance ‘Terra Laranja’ venceu os Prêmios Literários da Fundação Cultural do Pará em 2017 e o juvenil ‘A menina que engoliu um céu estrelado’ ganhou o prêmio CEPE 2018 (além de ter sido finalista dos prêmios CEPE 2017 e Barco a Vapor 2018).