PARA CHARLES, COM AMOR E MISÉRIA – LAÍS ARARUNA DE AQUINO

“What did one wall say to the other wall?” he asked shrilly. “It´s a riddle!” (Salinger)

(I)

Um homem, não; a Humanidade. Nada mais trivial
que nascer, morrer, povoar o mundo, superpovoar o planeta.
Perdoem-me, um nascimento é um novo começo,
mas entra na estatística como os demais. Sim, sofremos.
Os outros animais também sofrem, as plantas sofrem,
e nós ignoramos – talvez não com o nosso coração.
Até as pedras sofrem, rachadas pelo vento e pelo sol.
E então damos o nome de dignidade ao nosso sofrimento.
Mas, quando olhamos para dentro e vemos o vazio,
os psiquiatras tiram do livro o sintoma, os poetas repetem
“abismo” – e la nave va. Agora o homem deita confortavelmente
no leito de Procusto, temos um nome para cada coisa
e tudo se tornou exemplar. Mas o futuro talvez não chegará.
No ano de 2050, com otimismo, dois graus de superaquecimento
e mortandade. Ursos polares reviram o nosso lixo;
baleias morrem com quilos de plástico no estômago;
e o foie gras é uma comida de luxo que homens mimados,
bem-amados pelas suas mães e cuidados pelas instituições,
compram para escapar de um a outro tédio.
As mais sortidas esperas – eis o legado da técnica ou da exploração.
Homens – os que trocamos a austeridade do trabalho
pela escolha laboriosa da próxima refeição.

 

(II)

Eu me perdia inutilmente em questões como essas.
Mas, como fazemos à vista do superliminar, resolvi
me distrair e fui correr no clube. Eu já estava correndo
quando vi um garoto de quatro anos com um patinete
no meio da pista. Ao passar por ele, senti que se punha
em movimento e ganhava velocidade. Não sei por que
acelerei o passo, mas o barulho da roda não diminuiu.
Foi aí que escutei uma voz dócil gritar “ei, não é justo,
você está acelerando. M’espera.” O garoto havia percebido
que eu jogava – logo eu, que momentos antes havia desprezado
tudo, como se despreza o homem na ideia de humanidade.
Mas na hora eu só pude correr ainda mais rápido.
Então o garoto me esperou para a próxima volta. Quando o patinete
se pôs em movimento mais uma vez, fui o mais rápido que pude.
Eu me sentia puxada pelos cavalos de Zeus e não iria mais parar.
Depois, me despedi dele, rindo com toda a minha alma, porque tocava
you can’t always get what you want, e eu disse “vamos, deixe isso pra lá”.
Eu senti que minhas esperanças tinham sido renovadas,
porque, me perdoando a fraqueza de ganhar de um garotinho,
esquecia nele a minha ideia atroz de humanidade – nele, a quem
chamei Charles, dizendo-lhe em silêncio “meet you at the corner”.
Sim, Charles, eu sempre vou te encontrar na esquina.
Sobretudo quando estiver a passeio, na tentativa de ver
as quase extintas raposas-do-campo no final da tarde.
Agora eu sei que poderei sonhar com lobos e raposas e estar entre eles,
aguardando com paciência a minha vez na sua dança solitária,
para poder urrar em uma língua bela e desconhecida toda a minha dor
contra a face ausente da noite estrelada.
Eu saberei, quando os encontrar,
talvez em uma fotografia ou no livro esquecido de Kafka ou Kaváfis,
que a beleza perdeu todo o sentido –
ou que a beleza é todo o sentido que ainda nos resta.

_______________________
Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É autora de Juventude (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia 2017.