Friends are warmer than gold when you’re old
And keeping them is harder than you might suppose
Lately, I tend to make strangers wherever I go
Some of them were once people I was happy to know
David Berman
Com 20 e poucos anos fui recomendado por uma amiga a uma vaga de assistente de um jornalista. Seu nome era Marcelo Benevides, um cara renomado, que havia passado pelas redações dos principais jornais e revistas do país. Minha amiga trabalhava com a companheira dele, Ângela, de quem era muito próxima. Quando soube por ela que ele procurava alguém para ajudá-lo na edição de um livro lembrou-se imediatamente de mim. Na época éramos muito próximos e nos ajudávamos sempre com esse tipo de coisa.
Marcelo, ela me contou, estava com um tumor no cérebro. Não havia muito mais o que fazer. O processo todo estava sendo bastante doloroso, principalmente pra Ângela, e uma das formas que ele tinha arrumado de levar a vida adiante foi continuar trabalhando.
Pesquisando sobre Marcelo na internet descobri histórias a seu respeito que indicavam que o respeito de minha amiga era justificável e ia além da boa vontade natural concedida a conhecidos. Marcelo acumulava prêmios importantes e era famoso pela memória prodigiosa. Despertou a ira de um general durante a ditadura ao reproduzir com riqueza de detalhes a fala do oficial em uma entrevista na qual fora proibido de usar gravador.
Me encontrei com Marcelo no café de uma rede de livros e eletrodomésticos que anos depois deixaria o Brasil por conta da crise. Marcamos pela manhã. Cheguei um pouco antes do combinado e fiquei prestando atenção nas pessoas que entravam no salão, tentando identificá-lo em meio ao público com base nas poucas informações que eu tinha. Quando vi um homem na casa dos cinquenta anos de boné tive certeza de que era ele. Marcelo também me reconheceu com facilidade. Depois de uma breve inspeção pelo café, veio diretamente a minha mesa.
Tinha uma expressão alegre e jovial. Era simpático e afável. A garçonete veio nos atender. Pedi um café. Depois de um tempo analisando o cardápio Marcelo pediu um milk-shake de chocolate. “Estou podendo me dar esse luxo”, disse, dirigindo-se a mim, e foi direto ao ponto: estava escrevendo um livro sobre janelas antirruído, a pedido de um amigo, fabricante dessas janelas. Meu trabalho seria organizar o texto da transcrição das entrevistas com esse amigo para que ele pudesse trabalhar em cima. Marcelo levara toda a entrevista impressa e enquanto tomávamos nossas bebidas me deu exemplos de como deveria ser feito. “É simples”, ele disse. Concordei. Ele pagou a conta, nos despedimos com um aperto de mão e fomos embora.
Depois desse dia, nosso contato se resumiu a alguns e-mails pontuais. Havíamos combinado de entregar o trabalho em blocos, por assunto, à medida que eu fosse concluindo. Em algum momento meus e-mails ficaram sem resposta. Temendo pelo pior, perguntei à minha amiga se ela tinha notícias de Marcelo. Ela me disse que ia mal, mas não sabia muito e estava sem jeito de perguntar à amiga. Entreguei o restante do texto e esperei. Silêncio. Meses depois, um tanto envergonhado, mandei um e-mail perguntando se ele poderia me pagar. Não demorou muito para ele me responder, de forma breve e polida, e resolver o pagamento.
Pouco tempo depois soube da morte de Marcelo através de minha amiga. Mesmo sem me conhecer, Ângela quis me presentear com parte da biblioteca do marido. Separou cerca de duas dúzias de livros, a maioria sobre jornalismo, quase todos em inglês ou espanhol, e deixou com nossa amiga em comum. Há entre estes preciosidades como a obra jornalística completa de Gabriel García Márquez, no original; outros, como The best of Larry King Live – The greatest interviews, com uma foto do icônico apresentador ocupando toda a capa, me interessam menos.
Foi entre eles que descobri Joseph Mitchell, autor de dois dos meus textos favoritos do jornalismo literário: Mr. Hunter’s Grave e The secret of Joe Gould. No primeiro, Mitchell narra o encontro fortuito com um jardineiro de um cemitério. Tudo é banal nesse encontro. Ao mesmo tempo, há um entendimento profundo sobre as coisas que só se revela na última frase. O segundo talvez seja o retrato mais bonito da humanidade e seria um atentado falar sobre algo que resiste a qualquer explicação e só pode existir na própria experiência da leitura.
Esses livros sobreviveram a quatro mudanças e a uma separação. Duas, se considerarmos a distância furtiva que se instalou entre mim e minha amiga desde o dia em que os acomodamos juntos aos outros livros da minha biblioteca há mais de uma década. Era dezembro, ela se preparava para passar um mês fora estudando em Nova York e cultivava o hábito irritante de traduzir frases curtas que falávamos pro inglês. Reclamávamos do calor e tomávamos cerveja ruim quase congelada sentados no chão, lado a lado, enquanto ajeitávamos os livros na estante, sem nenhum critério aparente. Tínhamos acabado de nos formar e, apesar de toda insegurança, havia uma eletricidade no ar.
Quando terminamos de arrumar os livros, ela apoiou a cabeça em meu ombro e suspirou. Ficamos uns instantes em silêncio, estáticos. Ela me perguntou se às vezes eu não tinha a sensação de que as coisas tinham tudo pra dar errado. Eu disse que sim, o tempo todo, e emendei na sequência algum comentário bem-humorado. Minha amiga riu sem entusiasmo e encarou as prateleiras com uma expressão séria. “Você nunca vai ler todos esses livros”. Respondi que o importante é que eles estivessem ali. Ela então se levantou e rearranjou uma coleção de capas roxas, de volumes enormes, de modo que formassem um relevo irregular. Comentei que assim pareciam montanhas.
“Parecem”, ela assentiu, com o olhar fixo sobre os livros, como se de fato prestasse atenção neles. “They are like purple mountains”.
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Camilo Gomide é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e escritor.