A cidade
A cidade, peito fendido, por onde carros e homens caem pelos ralos,
Tragados por um grande aspirador em desordem
A cidade, este lugar de comunhão,
Onde homens e mulheres são exterminados dia a dia
Em suas casas, nos viadutos, nos becos, nas calçadas,
Na academia, à luz da tarde, no cruzamento, nos sinais,
Não há nada de ruim, afinal,
A cidade, este exemplo de civilização.
Os corruptos
Antes corruptos que preguem a moral e os bons costumes
Antes corruptos devotos a Deus
Antes corruptos que mantenham caladas suas mulheres
Antes corruptos que armem seus filhos já no berço
Antes corruptos honestos e patriotas
Corromper é um ato de bravura
Para quem ama a pátria e serve a Deus.
Aos 68
Aos 68 largou a arqueologia,
largou o laboratório embolorado da faculdade falida ,
largou um salário aviltante de ralos reais,
largou a mulher chata que pagava as contas,
largou os filhos já perto dos trinta,
largou a casa que morou 40 anos,
largou a cidade,
largou os amigos,
foi viver como guia turístico numa praia do Nordeste,
foi ter o rosto melado de maresia,
e dos beijos de garotos marombados
que passou a pegar nas pousadas, hotéis e Instagram
foi ser feliz e não deixou nenhum recado.
Lama
Não sabia mais quem era aquele homem
Aquele homem deformado que toma a pílula para fazer sexo
Dois corpos velhos jogados na cama
Como dois bonecos derretidos de pelancas
O pau enrugado duro que entra na boceta velha
O útero arcaico que sente uma dor descomunal
Sentir aquela barriga flácida e gelada sobre o corpo
Os joelhos estalam, a articulações rangem
O rompimento da velhice é como uma barragem
Que estoura e leva consigo tudo o que há pela frente
Pode haver desejo, pode haver um tesão mole
Mas, para o velho, é tudo lama.
Uma nação bárbara
Vamos construir uma nação bárbara
Vamos queimar os livros e os artistas
Vamos queimar nossa história
Vamos caçar as pessoas que não são de bem
Vamos amarrá-las em praça pública
Vamos linchá-las em nome de Deus.
Vamos espalhar o sangue de quem atrapalha o sistema
Vamos debelar quem ameaça a família brasileira
Vamos impor a moral pelas nossas próprias mãos
Vamos atacar os impuros e os infiéis
Vamos acabar com os viados e os com poetas
Vamos acabar com essa devassidão
Vamos construir uma nação bárbara.
O desejo de uma nação limpa e reluzente
De homens brancos felizes com seus automóveis
E suas casas de praia com lanchas velozes
Ameaça
Eu tenho um presente lindo para te dar.
Abra, é uma ameaça.
Quem mandou não ser reaça?
Quem mandou não querer um país novo?
Quem mandou querer tudo vermelho?
Gostou do presente?
Espero que agora se comporte.
Senão pegamos você, sua mãe, seus avós, seus filhos
É apenas uma medida de correção.
Não precisa se encabular, nem ficar com medo.
É um presente.
Enviado com carinho e amor.
E, sobretudo, com Deus no caminho.
A poesia
A poesia é gatilho contra o fascismo
Aperte com força
Homens brutos não suportam flores
Aperte com força
Estouro lírico dos miolos de chumbo
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Marcio Dal Rio nasceu em Mococa-SP, em 1973, e vive em São Paulo. Participou das coletâneas “Palavras de Poetas” 3 e 4 (Editora Physis, 1994 e 1995), “Transitivos” (Off Produções Culturais, 2011), “Curva de Rio” (Editora Giostri 2017) e “Carne de Carnaval” (Editora Patuá 2018). Em 2016, venceu o Premio Maraã de Poesia, promovido pela Editora Reformatório, com apoio da Academia Paulista de Letras, por meio do qual teve seu primeiro livro solo publicado, “Balada do Crisântemo Fincado no Peito” (Reformatório 2017). Desde 2006, escreve o blog Bloganvile, atualmente alojado no site Marcio Dal Rio