ROMPER DA MANHÃ – CHARLES BERNDT

Por que foi que cegámos, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.

(José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira)

 

confiante, a indiferença glacial passeia sem rosto e sem vida
e sem olhos
e sem um coração humano
pelas ruas da cidade sombria
pelas vielas de onde o amor é cada vez mais espantado
quase não há plantas ou crianças por aqui
só há morte e medo

romper, então, romper
talvez seja o tempo de romper
com o olhar fantasioso de rapina
com os monstros terríveis que lavam nossas mãos com o sangue
daqueles que morrem longe
romper com o cinza, com a brutidão,
com quem nos engana
suas promessas vazias
suas mentes doentias
seus braços de fuzis e pura distopia

romper com o torpe, o vulgar
com a voz atroz de metal
que paira no ar sem resistência
com as fechaduras e com as terras de sal
até brotar
do fundo do estômago
do lugar mais fundo de nosso corpo
regado pela água de nossas gargantas
enrugadas e vazias
o grito esquecido e temido
o verso fluído
a poesia e a língua proibida
da verdadeira liberdade
incandescente
medular
com rosto de nuvem
e corpo árvore
e luz de vaga-lume
que nos ensine, nos ensine
a respirar
a se espalhar
a ser e a voar

na escuridão da noite polar, viu-se o último o homem a chorar
quem sabe não seja o fim ainda
quem sabe, bem aqui, pulsando em plena emoção
haja ainda um coração
e onde se supunha um parafuso, uma carabina, uma espingarda
uma ponta de ferro
surja
de novo
sangue
sangue vivo
de esperança e palavras azuis

quem sabe
na curva do destino
onde dorme o vento
você vislumbre, logo ali em frente
por mim e por esses desvalidos
a luz que esse tempo não viu
ou não construiu
sim, no pior e mais escuro minuto da meia-noite
dentro do mais duro e longo pesadelo
vibra, querida, para surpresa dos cegos e combalidos,
a luz vigorosa da manhã prometida.

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Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno.