Gaiolas
Alongo os olhos
nesta manhã
e curvo a mão
sobre o teu peito:
frêmito de asas
que toma a forma
do chumbo
da cidade.
A carne
A carne
não é estéril.
A carne
é trêmula.
Trepida
como bandeira
vermelha
anunciando
transbordamentos.
A carne
conserva
o fogo
e o gelo
e a fome
dos nomes;
estampa
os reflexos.
É a carne
que devora
nossa palidez;
é a carne
que rumina
os leões.
É a carne
que canoniza
a maciez
do pecado.
Chiado
Encosto meus
ouvidos no teu busto
e ouço algo de Mozart:
pulsante desespero de cordas.
Travessia
Teus contornos gravados
em minhas linhas
são brancos hemisférios.
Tuas cavernas
segredos de pedra e chuva.
Desconheço mapas
que revelem a longitude
dos teus caminhos.
Nada é plano ou brando.
Necessário se faz desbravar
a tormenta
enfrentar a colisão
entre casco e rocha
aceitar o coração
contra as tuas pedras
pontiagudas e o naufrágio perfeito:
imergir no vermelho espesso;
a quentura invadindo pulmões
até que a respiração se avelude
até que reste apenas o abafado
som do oceano
acariciando o sal
dos rochedos.
Emancipação
Se somos
espelhos carnificados
— imagem e semelhança —
por que devorar
tua carne
é pecado de fogo?
A primeira noite
A primeira noite
em que se esvaiu,
foi como se arrancassem
cirurgicamente minha pele.
Ardia o toque de sua falange
em qualquer músculo.
Sobraram-me retalhos
de coração e sangue.
A segunda noite
em que se esvaiu,
parecia-me ter ferido
o calcanhar de Aquiles.
Toda a forma reduzida
num amontoado de carvão
em brasa.
Quando se esvaiu
as demais vezes,
calei-me.
Solidifiquei minha pata,
cristalizei um ventre.
Tornei-me perito em cinzelar
a madeira que nos sobra,
em acastanhar o negro da partida.
Bordar flores em ossos quebrados
é tarefa de quem possui
o estômago cheio de calos.
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Angel Cabeza nasceu no Rio de Janeiro. Poeta e cronista, atua como coordenador editorial e produtor gráfico. Publicou Sempre existe um último momento (crônicas, RJ, 2011) e Vidro de guardados (poemas, RJ, 2010). Integra as antologias Os melhores poemas de 2016 (ZL Editora, RJ, 2017, edição bilíngue), O Casulo (Patuá, SP, 2017), 29 de abril, o verso da violência (Patuá, SP, 2015), Escritores da Língua Portuguesa, Volume I (ZL Editora, RJ, 2012), Qasaêd lla falastin — Poemas para a Palestina (Patuá, SP, 2013) e Geração em 140 caracteres (Geração Editorial, SP, 2012). Possui textos publicados em diversas revistas literárias, entre elas Odara (UFRJ), Vício Velho, Gueto, Germina, Zunái, Subversa, Eutomia, Cronópios, Cuarto Propio (Universidade de Porto Rico), Verso Destierro (México) e Generación Espontánea (Madri). Seu novo livro, Canção para os seus olhos e outros castanhos, sairá pela editora Urutau ainda este mês.