A flor arrancada do caule
A raiz arrancada da terra
O parto
O porto
A partida
A chegada
O rio desembocando no mar
A chuva
O sono
O sonho
O despertar
O vestir
O despir
A pausa
O entretanto
O laço o desenlace
Os desafetos
Em tudo há efêmeras e infindáveis rupturas
*
A mal-intencionada lira tem a mira
no destino
o destino esse dardo
que atravessa o nome
o nome destina-se à morte
a morte esse arco feito enorme silêncio
*
O corpo é esse invólucro
de mil estrelas calcinadas em ossos
que lhe ergue e move
primitiva paisagem a desarrumar o ar
sibilante ao vento
Como lhe dói essa dor terrestre
na amputação das asas
em passos cegos de horizonte
O corpo é essa ilha fria coroada de ar
enraizada em si
errante em distâncias
Como lhe pesa essa busca escura
funda de passo a passo
no dessaber da gênese
O corpo é esse fosso fechado
para o quase sempre
a guardar o fulcro d’alma
em seu próprio tempo
Como lhe cega o nome
calabouço destino
consumado em membranas
tecido em vísceras
corpo é esse mar de sangue
a ondular na consumação das veias
o mar esse corpo
abre_Se em poros
para sorver o escuro – a luz – o ar
na urdidura do tempo
*
De ímpeto
desatar o nó das horas perdidas
saltar em campo aberto
no traçado cego de inexata rota
cultivar o inesperado: a visão
de clareiras ausentes de margens
paisagem circular
linha contínua de horizonte
no deserto da liberdade
dançar girândolas de solidão
pisar em arenosa dúvida
seguir e prosseguir a esmo
na contrafação do engenhoso tempo
no intento de ser livre
tornar-Se isca inerme de sua armadilha:
O abismo de seu arbítrio
*
De poro a poro
o ar vagueia na carne
o pão dormido queima no estômago
o carbono flutua aceso no pulmão
o fremir dos membros
atiça os gélidos tentáculos da pedra
sob fétida marquise
o humano se despoja do Ser
aninha-se na casca do andrajo
nas ruas o degredo devora
sono a sono
a vida
sob à escuridão da indiferença
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Wanda Monteiro é escritora, uma amazônida que herdou a sina de escrever em poesia a geografia de um mundo possível e mais humano. Obras publicadas: O Beijo da Chuva, Ed Amazônia, 2008; ANVERSO, Ed Amazônia, 2011, Duas Mulheres Entardecendo, Ed TEMPO, 2014,, AQUATEMPO, Ed Literacidade, 2015. Os poemas aqui publicados integram o livro A Liturgia do Tempo e outros silêncios, com lançamento previsto para o início de 2019, pela editora Patuá.