SEPARAÇÃO – RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA

O carro preto da Uber passava àquela hora da noite ao lado do Campo de Marte. A voz robótica do GPS mandava o motorista pegar a segunda saída da rotatória adiante. O espetáculo acontecia em um estacionamento. A música gospel saía de caixas de som enormes perto do palco. Não havia luz alguma. Não havia plateia. A voz desafinada da cantora tentava chamar a atenção de um deus fantasma. Logo nos afastamos e pegamos a rotatória, seguíamos pro centro velho, minha mulher ao meu lado olhava alguma coisa no telefone celular, eu não queria saber o que era, pensava na velha de noventa e quatro anos, minha avó, morta. Uma pessoa feliz a maior parte da vida, principalmente depois que vovô morreu, o marechal, que só conheci decrépito todo mijado em uma cama do seu apartamento, no quartinho de visita, separado da vovó que tinha a suíte apenas pra ela. Vovó teve muitos amantes depois do marechal e cresci com ela fazendo festas em sua casa. A velha aproveitou até bem tarde a pensão do marido. Não se casou com mais ninguém. Por que a minha mulher só me contou agora o que vovó fez? Queria me poupar, disse. Por que agora, então? A velha está debaixo da terra, aquela filha da puta intragável. Aguentei calada anos. Como pôde colocar nosso caçula na boca do sapo pra morrer em troca da dívida com o banco? Pra não perder a merda de um apartamento? Não falei nada, você amava aquela sua avó. Quem entrega assim pro diabo o próprio bisneto por dinheiro? Pra manter os amantes mais novos? Que ódio, se ela estivesse viva eu a matava agora com as minhas mãos. Isto ela me disse uma hora atrás, enquanto nos arrumávamos pra sair. Depois entrou no carro e enfiou a cara no telefone. Essa história tem oito anos já, ou nove? Nosso caçula morreu há oito. Virose. Tudo é virose pra esses médicos hoje em dia. Não sabem porra nenhuma. Levamos pro hospital numa noite e na manhã seguinte já estava morto. Era melhor que ela não tivesse contado essa história. Por que agora, então? Ela sabe que vou ser pai de novo, é isso? Ela sabe de Alexandra? Ela sabe que vou embora, que vou deixá-la? Mulher sente essas coisas. Ela quer se vingar. Talvez essa história seja inventada. É isso, inventou essa merda toda, diabos. Ela sabe que o nosso filho mais velho vai preferir ficar comigo na separação. Essa ressentida vai ficar sozinha. Como eu pude aguentá-la todos esses anos? Graças a deus vou embora. Vida nova. Esse motorista filho da puta não sabe nem chegar no centro da cidade? Voz de GPS chata pra caralho.


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Rodrigo Novaes de Almeida
(Rio de Janeiro, 1976) é escritor, jornalista e editor. Autor dos livros Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), Carnebruta (Contos, Editora Apicuri e Editora Oito e Meio, 2012), A construção da paisagem (Crônicas, 2012), Rapsódias — Primeiras histórias breves (Contos, 2009) e a ficção A saga de Lucifere (The Trinity Sessions — Cowboy Junkies, Ed. Mojo Books, 2009). É fundador e editor-chefe da Revista Gueto e do selo Gueto Editorial, projetos de divulgação de literatura em língua portuguesa e celeiro de novos autores. * “Separação” está no livro Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018).