SOBRE DERRUBAR NAVIOS – GISELE MIRABAI

O navio quebrou e ninguém notou. Morreram centenas de pessoas. Deu nos jornais, na imprensa do mundo todo. Mas na rachadura mesmo, ninguém reparou. Havia o engenheiro, o construtor, o tripulante. Qual era exatamente o motivo da falha? Dizem que foi um peixe, ou melhor, um tubarão que abriu a ferida do aço. Outros alegam ter sido o choque com um iceberg. Chegaram a dizer que pode ter sido o raio de um extraterrestre, mais de um alegou ter visto ovnis. Bom, de certo mesmo, só a fenda que não foi notada e derrubou uma embarcação gigante.

Acidentes acontecem. Coisas se partem. Mas onde começam as rupturas?

O tripulante diz que foi o capitão, que responsabiliza o construtor, que aponta o engenheiro, que acusa o magnata. Todos consideram a hipótese do extraterrestre. Nenhum deles assume a culpa (o etê não foi encontrado para depor).  Mas nós estamos aqui para buscar a causa real da rachadura. Nós investigamos. E descobrimos ter sido por causa da fenda interna, aquela sobre a qual ninguém fala. Estava na distração do primeiro, na ansiedade do segundo, na ambição do terceiro. Aconteceu com o navio e pode suceder a qualquer um, em qualquer momento. Vemos, sabemos, sentimos o incômodo, fingimos que aquilo não há de ter uma conseqüência. Mas claro que terá. Tudo sempre parte de uma causa. A culpa é de todos e o mundo é uma sucessão de falhas.

Se reparar agora mesmo, se fotografar esse exato instante em que você, leitor, se debruça sobre estas palavras, vai encontrar em si próprio, pontos a serem interligados de tudo que lhe aconteceu antes e tudo que virá depois. Um almanaque de colorir, um desenho para conectar os números e revelar a radiografia de todas as possíveis falhas que cometerá. O problema é que quando a ruptura acontecer, você não vai saber disso, vai demorar a entender, terá que lidar com a nau sem rumo e se afogar, talvez morrer, virão os tubarões, o desconhecido, as anêmonas a se enroscar em seus cabelos e você se perguntará: Eu aprendi a nadar? Por que eu não me preparei antes? Escutei o enunciado do professor? Mas talvez seja tarde demais. Pode ser que a água já se encontre em seus pulmões.

Quando algo se rompe, tudo que é fluido entra pelo espaço, o mar, o sangue, o ácido. Este ácido que causou a ruptura e corrói, a acidez que brota dos pequenos momentos humanos e se alastra, que escorre do ciúmes negado, da atenção não prestada em um dado importante, da mágoa não dita. O mesmo corrosivo que afunda o navio, a economia no material de construção, o aço vagabundo, o profissional não qualificado, a sede de ter mais o que é maior, melhor, poderoso. A acidez se encontra no início de qualquer ruptura e também no fim. No dia do naufrágio, havia corpos humanos e de focas espalhados, o sangue em meio às espumas do mar…

Precisamos ficar atentos, muito atentos, ao primeiro sentimento com gosto de acre. Ao azedume do primeiro pensamento. Para não derrubar navios.

Nesse momento, eu mesma, que não estava na embarcação, eu que me atenho a digitar estas letras, nesse momento em que a cada golpe na tecla eu desço todos os meus erros que impactarão o mundo da minha menor forma, eu mesma sinto culpa pelo navio. O casco se rompeu e não notaram. Se eu fizer um raio x dessa história, se filmar o naufrágio em rewind e fast forward, se eu entrar em cada canto da embarcação, junto ao rato, ao pensamento do cozinheiro, pelos passageiros em suas cadeiras, na conversa dos membros da tripulação, se eu buscar a ruptura do navio em toda a parte da aparelhagem, a culpa na hélice, na turbina, na qualidade da tinta do casco, nessa alga que se grudou ali no fundo sem querer, no tubarão, no extraterrestre, e se eu procurar a causa em todos os lugares, mas tiver mesmo sido um acaso, existirá um deus que assuma a culpa por tudo?

Enquanto buscamos o início da queda, na tentativa insana de filosofar o absurdo, enquanto pensamos que falhas acontecem – delas brotaram os fiordes da Noruega, das fendas tectônicas nasceram os oceanos – enquanto isso, vivemos nossas tragédias. Ao tempo em que os homens se apontam os dedos e dizem “foi você”, as pessoas caem no mar e morrem. O navio foi construído por estaleiros, autorizado por regulamentações marítimas, na certeza de ser inquebrantável. Não sabiam? Tudo que existe se rompe. O máximo que podemos fazer é plantar flores nas rachaduras. Agora mesmo, da falha que gerou nosso silêncio, surge este texto. Escrever é sempre uma tentativa de viver a mais do que a experiência promete. De prolongar o efêmero da vida, perante a dor da ruptura da morte.

Quanto ao navio, os corpos foram enterrados no dia 23 de fevereiro. Parentes levaram flores. Outros não foram encontrados. Sonhos interrompidos repousam agora no fundo do oceano. Aquela passageira, por exemplo, uma moça que sonhava com um rapaz… De quem é a culpa por tamanha lacuna? Esperamos que haja ao menos um cemitério para as histórias que não aconteceram. Se não encontramos respostas para as falhas, que ao menos possamos oferecer nossas flores imaginárias.


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Gisele Mirabai 
é escritora e roteirista de cinema e tevê. Estudou cinema na London Film Academy, licenciatura em Artes Cênicas pela UFMG e pós graduação em Literatura pela UFF. Tem cinco livros publicados, dentre eles, MACHAMBA (Ed. Nova Fronteira), romance vencedor do 1º Prêmio Kindle de Literatura e finalista do Prêmio Jabuti de Melhor Romance 2018 e GUERREIRAS DE GAIA (Grupo Global), adotado por diversas escolas do Brasil. É roteirista e diretora do longa documentário HOMEM LIVRE, rodado em cinco países, premiado em festivais e atualmente exibido pelo canal GNT.