Nascida no século passado, no final da década de 70, cresci cercada de tabus sobre a sexualidade feminina. Sexo nunca foi assunto proibido em meu seio familiar, mas é inegável que eu tenha convivido com essa proibição em outros espaços de sociabilidade. Apesar disso, foi apenas a maturidade que me levou a perceber que, por mais que pareçam bem trancadas as portas, a fumaça passa pelas frestas e chega até nós. Hoje sinto o cheiro de longe.
A escola me mostrou muitos textos sem falar sobre eles, sem me instrumentalizar para uma leitura plena, para uma leitura que pudesse promover em mim identificação e prazer. Passei pelas cantigas de amigo, sem pensar o amigo; pela fita de Castro Alves, sem entender o laço; por Pombinha em flor, sem saber da borboleta.
Não me foi apresentada na escola nenhuma mulher, nenhuma escritora que tivesse trabalhado literariamente a sexualidade feminina. De tudo, o imperdoável para mim é não terem me contado que antes da década de 30, muitas mulheres não só escreveram Literatura, como escreveram em versos seus desejos e prazeres mais carnais, construindo uma tradição da poética erótica de autoria feminina.
No mundo ocidental, a mais distante no tempo a que temos notícia é Safo, por volta de 600 a.C.. Se ela não faz parte dos programas escolares, também não posso afirmar que seja difícil seu nome chegar a qualquer pessoa que se interesse minimamente por poesia. Mas ela é uma exceção. Não creio que pelo fato de ter escrito, ou escrito poemas envoltos em sensualidade, ou escrito poemas de caráter homoafetivo – tudo isso já poderia justificar sua excepcionalidade –, mas pelo fato de ter se tornado conhecida. Ter seus textos – no caso dela, fragmentos – conhecidos é exceção em um mundo onde o canto feminino, sobretudo erótico, costumou ser abafado.
Dando um salto para o século XII de nossa era, existiram trovadoras que compuseram canções para seus amados, carregadas de desejo real. Amor cortês, mas que saciava também a carne. Nem sempre a mulher ocidental precisou dissimular seu prazer. Saber de uma Béatriz de Die é-me reconfortante. São dela os versos Bel ami, charmant et plaisant,/ Si retombez en mon pouvoir/ Et qu’avec vous je couche un soir,/ En vous donnant baisers d’amour,/ Sachez quel grand plaisir j’aurais/ De vous en place de mari/ Pourvu que me donniez promesse/ De tout faire à mon bon vouloir[1]. Neles, o eu-lírico feminino diz com todas as letras que quer o amigo/amado a quem se dirige sob seu poder por uma noite em lugar do marido, já que esse homem é charmoso e agradável, sua única condição é que ele faça o que ela desejar. É uma voz dona de sua sexualidade, que sabe o que quer e como quer. Quantas outras vozes femininas não devem ter ficado pelo caminho?
Quatro séculos depois, ouviu-se a voz de Louise Labé. Dela não restaram apenas fragmentos nem apenas quatro cantigas. Louise deixou uma obra: uma peça, três elegias e vinte quatro sonetos. Escreveu na próspera Lion renascentista.
Ela não estava descontextualizada. A chamada Querelle des femmes estava em curso desde o final da Idade Média – um debate sobre o papel das mulheres na sociedade que se deu sobretudo em um ambiente intelectualizado. Por isso mesmo, ela tem também seu nome conhecido entre as feministas contemporâneas, por seus posicionamentos retratados não só em sua produção literária, mas também pela dedicatória de seu livro a uma amiga, Mademoiselle Clémence de Bourges: Tendo chegado o tempo, Senhorita, em que as severas leis dos homens não mais impedem as mulheres de se aplicarem às ciências e às disciplinas, parece-me que aquelas que têm facilidade devem empregar esta honesta liberdade que nosso sexo antigamente tanto desejou para cultivá-las; e mostrar aos homens o equívoco em relação a nós quando nos privaram do bem e da honra que delas podiam vir[2].
Assim como Béatriz de Die pôde existir em função de uma rara liberdade econômica para as mulheres da Idade Média – possível em uma região da França em razão das Cruzadas –, Louise Labé gozou de uma formação intelectual como poucas. Ela teria aprendido latim, grego, italiano, música e, até mesmo, arco e flecha.
Labé é uma dessas mulheres que foram lidas e citadas por homens e outras mulheres de renome em nossa cultura, mas nem sempre de modo enaltecedor do ponto de vista da moral, a exemplo do teólogo Calvino, que a chamou de plebeia meretrix. Mas também houve nomes como o de Rilke, que a traduziu e a considerava uma grande poetisa. Duas figuras que se destacam nesse cenário são Foucault e Beauvoir. Foucault considerou a peça “Debate de loucura e de amor” de Labé importante para a reflexão sobre razão e loucura; Beauvoir defendeu a ideia de que a poetisa teria sido uma cortesã, em função da liberdade de seus textos.
Os poemas da escritora seguiam a norma estrutural que imperava no Renascimento, sonetos à maneira de Petrarca. Entretanto, Louise Labé não teve como matéria o neoplatonismo. Pelo contrário, ela o recusa. O conteúdo de seus poemas é o amor e o lamento. Mas não o amor sublimado, idealizado e inacessível; o amor em Labé é intenso, cheio de erotismo e concretude. Ela rompe com a tradição no tocante à ideia de amor e rompe ainda mais com o comportamento imposto às mulheres: além de escrever, os textos eram cheios de erotismo a partir da ótica feminina. Talvez por isso mesmo, tantos autores atribuam um caráter confessional à poesia de Labé. Algo que não se vê com frequência quando se trata de obras de escritores. Por trás dessa ideia, existe uma concepção de que o “universal” é masculino. Logo, a visão do amor erótico “universalizada” é masculina.
O que se lê na época de Louise Labé são poemas dirigidos a mulheres que ocupavam o lugar de objetos de desejo ou de musas inspiradoras, em posição de passividade e submissão. O que surpreende nos versos da poetisa é essa inversão do papel feminino exercido quando pensado o contexto social em que ela estava inserida. Em sua lírica, o eu-poético é feminino e ele louva e ama de um lugar feminino, ativo e compartícipe.
Além desse lugar ativo, ocupado pela voz feminina que canta o amor, Louise Labé, diferentemente dos poetas renascentistas, associa a experiência erótica à libertação de sua alma e de seu corpo de mulher. Ela inova ao ignorar a busca neoplatônica de elevação da alma através da sublimação do amor sensual.
Em versos como estes do soneto XVIII: Baise m’encor, rebaise moy et baise:/ Donne m’en un de tes plus sauoureus,/ Donne m’en un de tes plus amoureus:/ Ie t’en rendray quatre plus chaus que braise[3]., o eu-lírico expressa a intensidade de seus desejos a partir de uma figura querida à literatura erótica, a brasa. A voz pede beijos saborosos e amorosos e promete devolvê-los mais quentes que brasa. É clara a experiência de ambos em prazer partilhado.
Ainda nesse mesmo soneto, lemos os versos Lors double vie à chacun en suiura./ Chacun en soy et son ami viura./ Permets m’Amour penser quelque folie:[4], em que há uma certa transcendência – ou seria melhor pensar em projeção? – a partir da experiência amorosa. O eu-lírico diz que o amor permite que os amantes vivam duplamente, em si mesmos e no outro. É possível pensar ainda em uma experiência plena do ato erótico, uma fusão de corpos.
O último terceto é ainda mais interessante: Tousiours suis mal, viuant discrettement/ Et ne me puis donner contentement./ Si hors de moy ne fay quelque saillie[5]. A voz que fala admite não conseguir viver de modo discreto, logo de acordo com as normas sociais impostas. Ela marca bem sua transgressão ao dizer que só encontra contentamento fora de si, quando faz saliência. Fora de si mesma e possivelmente no outro. Então, seria o gozo? Uma voz feminina que afirma o próprio orgasmo, um prazer fora das regras.
O soneto XXIV, o último, é dirigido as outras mulheres. O eu-lírico pede não só para que as damas não julguem a intensidade com que amou, como também argumenta que se as mulheres tivessem experiências amorosas, mesmo que menos satisfatórias quanto às dele, do eu-lírico, seriam menos infelizes. Lê-se isso sobretudo nos dois primeiros versos da primeira estrofe e no último terceto: Ne reprenez, Dames, si i’ay aymé:/ Si i’ay senti mile torches ardantes,/ (…)/ En ayant moins que moy d’ocasion,/ Et plus d’estrange et forte passion./ Et gardez vous d’estre plus malheureuses.[6]
Ao que seus próprios textos indicam, Louise Labé teria sabido usar da liberdade que apenas às mulheres abastadas era dada para ter uma educação refinada. Desse lugar de mulher instruída, ela transgride as duras normas morais e sociais impostas às mulheres, não só se torna uma literata, como versa sobre um amor sensual, a partir do desejo feminino. Transgride ainda mais, uma vez tendo ocupado um espaço de poetisa, ao não seguir a tendência do neoplatonismo de seu período. E em seu último poema, ainda se posiciona diante das outras mulheres, que poderiam julgá-la, e as aconselha a serem felizes através da realização de suas sexualidades. Um eu-lírico, ainda hoje, com uma postura de quebra de paradigma do comportamento feminino na cultura ocidental. Se sua poesia foi confessional ou não, não é de fato relevante. Sua obra apresenta incontestável qualidade estética e autenticidade.
A partir do século XX, os nomes de poetisas que trabalham a matéria erótica tornam-se mais numerosos. No Brasil, por exemplo, recentemente, Jamyle Rkain organizou a publicação da obra de Gilka Machado, considerada a pioneira da poesia erótica no Brasil. Autoras vêm sendo resgatadas e eu me mantenho atenta. Sigo na busca por mulheres que ousaram escrever, que ousaram questionar o lugar onde a sociedade as queria, que ousaram cantar seus desejos e anunciar que as mulheres têm sexualidade e que querem gozar dela tanto em seus corpos, quanto no corpo poético.
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[1] Belo amigo, charmoso e agradável, / Se caísseis novamente em meu poder / E convosco eu me deitasse uma noite, / dando-vos beijos de amor, / Saiba que grande prazer eu teria / De ter-vos no lugar de marido / Desde que me prometêsseis/ fazer tudo de minha vontade. (Tradução livre.)
[2] FORTUNA, Felipe. Louise Labé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995.
[3] Meus comentários sobre os versos são baseados no texto original. Entretanto, para que o leitor pudesse desfrutar da métrica e rima aproximadas, optei por colocar as traduções de Felipe Fortuna.
Beija-me ainda, rebeija-me e beija;/ Dá-me um daqueles teus mais saborosos,/ Dá-me um daqueles teus mais amorosos,/ Quatro eu darei em que a brasa viceja.
[4] Cada um dupla vida assim terá./ Cada um noutro e em si mesmo estará./ Permite Amor que eu pense tal loucura:
[5] Sempre estou mal, pois vivo em desalento,/ E só consigo ter contentamento/ Fora de mim, ao buscar aventura.
[6] Não censureis, Damas, se tenho amado:/ Ou se senti mil tochas abrasantes,/ (…)/ Mesmo com menos do que eu tive então,/ Será estranha e forte esta paixão./ E não sejais portanto desditosas.
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Renata de Castro é professora e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos, embora também escreva prosa. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) – composto não só por poemas, mas também por contos – e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018) – composto exclusivamente por poemas eróticos. Fez parte da Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Benfazeja, 2016), da Antologia Poética Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017) e Antologia Poética Senhoras Obscenas (Ed. Patuá, 2019). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.