TAL COMO O CORPO QUE SE DESCOBRE RUÍNA – FÁBIO PESSANHA

cindir o fio que liga
à ruptura do poema.
não saber se é mesmo frio
ou calor o que me queima
junto à palavra em sua força
extrema. romper a imagem
durante o momento em que ela
se torna cor. infringir
o calar das vozes rumo

ao sacrifício do amor.
quebrar o laço que me une
ao compasso oblíquo: a veia
que me jorra desde antes
do corte. a coisa que me
fere, que me mata a fome,
que me deixa ausente dessa
falta de sentir ausência.
esse buraco maciço

no oco do corpo sempre
pede mais alguns centímetros
de orgasmo ao filho direto
do meu vício por desvios.
pecar é algo que faço
com prazer na invenção da
mentira mais bem contada
sobre todas as verdades.
é vital abençoar

o canal por onde passam
os indícios da justiça
e me preparar bem para
o juízo da vontade
de sorver as confissões
destinadas para além
da absolvição da vida.
prazer enorme é romper
com a certeza do amém que

me limpará da sujeira
necessária aos meus equívocos.
santos são os que comem dúvidas
e conservam suas orgias
consagradas aos meus segredos.
sejamos a derradeira
cobiça de uma existência
em que céu e terra dancem
a ciranda que compõe

a nudez dos nossos pés.
sejamos quem sabe ainda
o pó entre os dedos que
entram inteiros nas bocas
tão famintas por delitos.
sejamos também saliva
para escorrer corpo afora
no limite do caminho
ferozmente proibido.

rebentar como inventar
o elo que nasce entre
o desejo de invocar
os demônios habitantes
das certezas consumidas.
ser a fúria que interrompe
o sorriso quando os lábios
se tornam fronteiras entre
o minguado e o desmedido.

de todas as coisas que eu
disse nada se compara
ao desafio de se
arruinar com o corpo desse
poema, e deixar as mãos
entregues ao cumprimento
dessa fé que se propaga
no útero da vertigem
quando escrevo mais um verso

no deserto corrompido
dos apuros em meus egos.

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Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura e na própria Vício Velho. Ministra oficinas de poesia para tentar se desconhecer melhor.