TRAGO NO INFERNO – BRUNO RIBEIRO

Você não está perto de mim, querido. Seu pescoço, o lance que você usa para prender o cabelo, os dedos finos como cigarros sem nicotina, a voz de terremoto, a altura que ultrapassa. Que tanto é compatível com a minha, que transborda. A nossa, ou não, tanto faz. Está escutando isso? O vômito impetuoso? Meu corpo está manchado de amor e restos de comida de ontem. São simples pensamentos que se tornaram concreto, meu lindo. Entraram na derme, no corpo, nas moléculas, alcançaram as tripas até flutuarem da glote ao piso desta casa. Aqui estou, aguardando um remédio, um beijo em meus lábios mortos. Acendo o cigarro. Trago e a fumaça sai pelo estômago. É engraçado de ver.

Não acha?

Seus lábios diziam “volte”, agora eu digo “vazio”. Não consigo verbalizar. Gaguejo. A fumaça escorre com o fluxo gástrico e a mente viola os planos da natureza humana, invejo a sua humanidade, seus amores de carne e osso, sua negrura vívida, seus gostos saudáveis. Quero isso pra mim de novo, mas… Não dá mais. Só que ainda quero você. Quero tanto que sangro carne, sangue e cerveja, quero tanto que meus dentes arriaram. Meu joelho está destruído, meus olhos estão dilatados, rabo rasgado, nariz quebrado, cabelos desgrenhados, vida com ácido, alma frágil. Você me amaria assim? Se eu chegasse rastejando até seus pés, com um cérebro em meus lábios, mastigando humanos… Você me amaria? Se eu fugisse deste país, sem olhos, deglutindo órgãos, gesticulando nada, caindo aos pedaços…

… Você me amaria?

O trago sai pelos órgãos internos, pelo cu, a fumaça vaza pelos dedos do pé e transpira nos olhos… Tudo queima, dói. É difícil se acostumar com esse novo organismo. Ao meu redor, 34 casas vazias e nos terrenos baldios, outros apodrecidos pelo amor distante, como eu eles estão com roupas rasgadas e olhos acinzentados, levantando o braço em busca de comida, de gente. Ouço um espirro. Sim, meu amor. Uma criança, loira, olhos claros, o clichê daqueles filmes ridículos de zumbis que assistíamos na madrugada. Essa criança diz “por favor”, eu tento falar, mas o som que sai de mim é estranho, ecoa pela casa e arrepia os cabelos aloirados da criatura humana à minha frente. Humana? Olho meus dedos, sim, humana. Abandonei essa classificação faz algumas horas. Eles disseram que carne de criança é mastigável, desce melhor para quem acabou de se transformar – Confio neles.

Antes que os outros pudessem avançar nela primeiro, eu arranco os pedaços da garota, seus pequenos braços foram emergindo em meu bucho cheio de fumaça, desmembrei seu corpo esguio até ter toda a carne infantil adentrada em meu corpo abstrato. A fome passou. E… Acho que chorei, não consigo lembrar. Tentei falar, pedir perdão aos Deuses, mas ninguém me escutava. Penso nesta carta invisível, mesmo sabendo que ela nunca poderá ser escrita ou entregue a você. Será mesmo? Pois é, rapaz bonito. Lembra dos nossos últimos momentos? Você ainda não está perto de mim, né, perto da minha ruptura, pois não sou mais aquele, sou outro, melhor ou pior?, não sei. Mas eterno, isso sim.

O meu fim não é mais humano.

Trago, meu amor. Tragarei para sempre, seguindo a corja que me pariu. Mil e não sei quantos. Infindáveis. Somos infinitos. Legião. A nova ordem, o novo paladar, as vozes aterrorizantes que violam as audições. Gutural, rouco, ressonante, insólito. O som que irá invadir seus pesadelos. Não voltarei como antes. Mas voltarei. Rastejando e tragando cadáveres de crianças.

… E depois de tanto tempo, finalmente estamos próximos de vocês. De você.

Ao lado pra falar a verdade, cheirando seus pescoços comestíveis, suas almas caridosas, seus olhares amáveis. O seu olhar. O seu. Não importa a vizinhança, só quero você. Matar a saudade. Sentir aquele cheiro. Você me amará ainda? Talvez não. Amor nas atuais condições é um termo forte, demasiado frígido. Acho até que você não vai me reconhecer. Mudei muito. Meus pratos favoritos não são mais os mesmos. Você verá. É isso mesmo que você acabou de ler: essa carta será entregue pessoalmente. Sabia? Estou aguardando, mas a hora chegou. Agora. O reencontro. O toque. É, toquei a campainha. E eu sei que você está em casa. A luz da cozinha está ligada. Você só deixa a luz da cozinha ligada quando está em casa. Logo, só peço uma coisa: quando abrir a porra dessa porta, me dê um beijo, pois estou morto de saudades.


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Bruno Ribeiro
nasceu em 1989, é um mineiro radicado na Paraíba. Autor do livro de contos Arranhando Paredes (2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider e dos romances Febre de Enxofre (2016) e Glitter (2018), que foi pré-selecionado ao Prêmio Sesc de Literatura 2016 e finalista da 1° edição do Prêmio Kindle. Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), foi um dos vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela Amazon.