Primeiro, hoje é o velório dela. Vovó sempre morou na casa de tábuas da sua infância. Os quartos ficam no segundo andar; a escada repete uma sinfonia toda vez que está em uso; o banheiro, com gravuras botânicas nas paredes, fica no térreo; a sala é ampla e conectava-se com a varanda apinhada de plantas nativas; o toca-discos fica entre elas e é o anfitrião: um palacete expandido no sítio onde viveram nossas últimas gerações. Dentro do terreno, próximo à casa, passa um rio. Ele tem cor de absinto e, à tarde, sua correnteza faz redemoinhos nos galhos das árvores que levemente recaem nas águas. Assim como as canções que, no mesmo horário, giravam na agulha, tangiam da caixa de som e invadiam o quintal.
Ritualística, vovó preparava o café, enchia uma caneca de ferro esmaltado, e o deixava na margem como oferenda ao rio. Eu gostava de passar temporadas com ela. Na hora da sesta, deitávamos nas redes penduradas nos ganchos da varanda. Ouvíamos o contralto da Mercedes Sosa misturado ao falatório dos insetos e ritmo das águas. O cheiro que nos acompanhava era o das lavandas nascidas na pequena plantação no entorno da casa. Quando suas flores ficavam com um tom lilás acinzentado, eram colhidas e postas para secagem nos varais. Vovó produzia defumadores de ambientes e colônias para vender nos armarinhos da cidade.
Ela contava que na infância seu pai foi severo. Ele a levava para pescar e ajudá-lo na roça. Saiam de madrugada com as corujas crocitando suas narrativas. Vovó não tinha calçados e blusas para os dias frios. Quando na canoa, as escamas e sangue dos peixes grudavam na sola dos seus pés; quando na roça, os carrapichos cortavam e os matinhos entravam entre seus dedos. Não havia saída, se não fosse, apanhava.
Tempo difícil para quem vivia de pesca e colheita. As crianças não ganhavam brinquedos. Foi o caso da minha vó. Ela sentia-se só. Queria uma boneca. Decidida, um dia foi até a beira do rio e escolheu uma pedra bonita. Pincelando um graveto, no arilo que macerou da semente do urucuzeiro, desenhou um rosto. Traços avermelhados se destacaram na matéria amarelada da pedra bruta. Fez batismo dançando no declive das águas. Deu-lhe um nome: Teresa. Vovó contava que ela foi alegria em sua infância. Levava-a na bolsa de pano que vestia lateral ao corpo. Toda vez que sentia-se triste, sigilosa colocava a mão na bolsa e acarinhava a boneca.
Os bisavós se acomodavam nas redes da varanda após o almoço. Ela alinhavando rendas nos panos; ele pitando cachimbo e ouvindo seu radinho de pilha. Vovó sentava na areia do quintal, desenhava ruas de um vilarejo imaginário, e brincava com Teresa. Certa vez meu bisavô chamou-a. Imersa em seu mundo maravilhoso, não ouviu. Num ímpeto ele levantou-se da rede derrubando o radinho no chão. Bisa, assustada, largou as rendas e tentou segurá-lo sem conseguir. Ele foi até minha vó, arrancou a boneca da sua mão e arremessou-a nas águas. Vovó desesperou-se e correu. Teresa imergiu. Pode-se ouvir o eco do corpo assentando seu peso no fundo do rio. Vovó ficou calada, molhando os joelhos e assistindo sua tristeza no espelho d´água. Biso voltou a deitar-se na rede. No pescoço de vovó se enrodilhou a fumaça perversa e cheiro do cachimbo dele. Bisa costurou seu silêncio entre os panos. Ao fundo ouvia-se os chiados do radinho que saíra de sintonia e não mais equalizou. Bbrrzz bbrrzz bbrrzz, tanta vida existiu depois desse enredo. Certa vez vovó declarou que tudo que viveu na relação tumultuada com seu pai, o bisavô que não conheci, havia lhe tirado os medos. E isso, ainda que por linhas tortas, agradecia. Mas ela dizia-se incompleta. Teresa nunca deixou de ser presença nas histórias que nos contava. Penso que decidiu não sair do sítio para ficar perto dela – que vive há muitos anos dentro do rio. Ela narrava que viu a boneca inúmeras vezes: um peixe de pedra luminoso saltando nas águas.
Minha avó morreu ontem, sentada em seu lenço, olhando para o rio.
Ela preparou a partida de muita gente. Colocamos o caixão a sombra no quintal. Conduzidos por seus ensinamentos: revestimos por dentro de veludo; borrifamos água de laranjeira; acomodamos seu corpo e preenchemos com as flores das lavandas colhidas na plantação. Um delicado jeito de decorar caixões.
Meus pais, amigos da vizinhança e eu, estamos reunidos. O rosto dela ainda conserva ternura. As rupturas do tempo em sua pele, que antes se moviam como correntezas, agora estão inativas. Os pássaros sinfônicos fazem um bonito voo de aterrissagem e bicam as flores no caixão. Temendo que perfurem o corpo, mãe corre para espantá-los. Pai, ainda que consternado, sorri ao ver o zelo dela. Assisto tudo segurando o lenço do último suspiro de vovó. Ela sabia que a morte chegaria por esses dias. Precavida, deixou vários frascos da sua colônia de lavanda para entregarmos a quem viesse celebrá-la pela última vez.
As horas cumprem suas cirandas nos ponteiros dos relógios. Os convidados, aos poucos, encerram suas despedidas, pegam a lembrancinha e partem para suas vidas. Foi bonito vê-los, celebrando minha vó, beijando suas mãos enrijecidas de morte. Ela nos fará muita falta. Quando esses cerimoniais acabarem, trancaremos a casa. Não venderemos o sítio. Tudo ficará como ela deixou. Exceto as plantas que serão tiradas dos vasos e devolveremos a natureza. Talvez, seja para esse reduto cíclico que voltaremos na velhice.
A casa, o rio e as pedras.
O tempo veste o âmbar do fim de tarde. As nuvens se entrelaçam feito renda no céu. Às vezes a natureza parece uma invenção. Fechamos o caixão. Ele será enterrado ao amanhecer. Os pássaros aninham seus segredos. Meus pais se aproximam e ficamos lado a lado na beira do rio. A lua reflete luz nas folhas das árvores. Descalços, fincamos os pés na areia. Dois peixes de pedra rompem o tempo e pulam iluminados. Mergulham ecoando os estilhaços d´água. Um átimo e eles emergem repetindo a coreografia. Aperto as mãos dos meus pais. Talvez as pedras nadem lá no fundo. Elas não voltam. Testemunhamos a água se enrugando e, aos poucos, tornando-se uma vaporosa ondulação. Por último, o vento sopra, o braço do toca-discos se move e Mercedes canta.
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Stefanni Marion nasceu no vilarejo de pescadores Barra do Una (SP) em 1981. Publicou os livros Inventário (Patuá, 2014) e Temporário (Patuá, 2012). Atualmente habita uma mala antiga, senta-se na banqueta azul e toma café em uma xícara verde.