Vi o corpo se espatifando na calçada – ou será que apenas escutei o barulho? – e na sequência um corre-corre e gritos de desespero. Ia atravessar a rua para dar uma espiada, olhar de perto, mas minha condução apontou na esquina e eu já estava atrasado. Subi no ônibus e me sentei ao lado da janela a fim de ver uma vez mais. O motorista passou devagar, porém havia tanta gente que foi impossível avistar mais que um amontoado de cabeças disputando espaço no local da cena.
Desci na Praça João Mendes e fui direto ao edifício do Fórum. Minha advogada me aguardava na entrada e acenou quando me avistou.
– Desculpe o atraso. Houve um incidente. Acabei de presenciar um suicídio.
– Meu Deus! Que coisa horrível! Sinto muito.
Entramos, subimos de elevador até o segundo andar e nos dirigimos à sala de audiência. Vera estava esperando, sentada, ao lado de seu advogado. A gravidez avançada havia tornado seu rosto mais redondo e suave. Estava bonita, mas evitei olhar para ela.
A juíza entrou logo depois. Parecia estar com pressa, tinha um ar distraído, o olhar distante. Depois de sentar-se à mesa e examinar os papéis que estavam à sua frente, voltou-se primeiro para Vera e depois para mim. Perguntou se havíamos lido toda a papelada e se estávamos de acordo com o estabelecido na partilha. Vera e eu trocamos um olhar de anuência e ambos respondemos que sim, havíamos lido tudo e estávamos de acordo. “Você está grávida?”, perguntou a juíza, levantando-se um pouco da cadeira para olhar a barriga de minha quase ex-mulher. “Sim, de quase oito meses.”, respondeu Vera, acariciando a barriga. A juíza voltou-se para mim e pediu que eu saísse da sala por alguns minutos, até ser chamado de volta. Na sequência dispensou também os advogados.
Saí para o corredor e busquei no celular alguma notícia sobre o suicídio na Cardeal Arcoverde. Ainda não havia nada. Na verdade, eu estava tentando me distrair do que acontecia na sala ao lado. “Não se preocupe, é de praxe o juiz conversar com a mulher nesses casos, para verificar se ela não está sofrendo algum tipo de pressão quanto à partilha.” Eu ia responder alguma coisa, mas preferi me calar. Havia escolhido uma advogada, em vez de um advogado, justamente para causar boa impressão. Estava arrependido do tapa desferido no rosto de Vera quando ela contou que estava grávida e o filho não era meu. Tirando o tapa, disparado num momento de espanto e fúria, a vítima ali era eu, mas a juíza estava preocupada com ela.
Alguns minutos mais e fomos todos chamados de volta. A juíza conversou com os advogados e os documentos que firmavam o divórcio foram repassados a Vera, depois a mim, a fim de serem assinados. Tudo muito rápido. A juíza despediu-se e retirou-se da sala. Eu, por cortesia e por não saber bem o que fazer, apertei a mão dos advogados e por último a de Vera, e saí dali correndo, até chegar à praça, onde agora havia o burburinho de um protesto qualquer. Atravessei a rua, entrei na Catedral, sentei-me em um dos bancos do fundo, atrás de uma coluna, e me deixei ficar ali por algum tempo.
Nada em volta de mim fazia sentido. E dentro era o caos.
Li, anos atrás, A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, texto em que o físico e filósofo da ciência norte-americano analisa a forma como se desenvolve a ciência. Kuhn explica o que acontece quando certo cientista ou grupo de cientistas passa a estudar um fenômeno utilizando as teorias, os métodos e as tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho e aos poucos percebe que os conceitos, procedimentos e instrumentos existentes não explicam o que está sendo observado, assim como não levam aos resultados que se buscava. Diante desse obstáculo, o cientista ou grupo de cientistas precisa ter a coragem de rejeitar a teoria corrente, bem como os métodos e tecnologias ligados a ela, e dedicar-se à elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que impactam todo o campo de conhecimento vigente até então. É quando surge uma nova ciência, um novo paradigma e uma nova visão de mundo. É o que Kuhn vai chamar de “ruptura epistemológica”.
Não sei por que razão lembrei-me do livro de Thomas Kuhn naquele momento. Um novo paradigma, talvez fosse isso. Eu precisava encontrar algo que refizesse por inteiro minha concepção de felicidade, porque ela não fazia mais sentido diante dos fatos. Eu havia amado Vera loucamente e todo meu projeto de vida tinha sido construído em torno de nossa relação. “Somos um”, dizia ela, enquanto me abraçava e beijava carinhosamente. Mas éramos três, ao menos a partir de um momento qualquer que ela nunca me deixou saber quando começou.
O som do órgão de repente invadiu a Catedral e um coro se pôs a entoar um Kyrie, num canto diáfano, diria até mesmo angelical. E eu, sempre tão cético e acre com as coisas tocantes à metafísica, fui tomado por uma experiência inusitada, um forte sentimento de exaltação e transbordamento. Então me pus a chorar copiosamente, purgando todas as dores daquele dia, dos últimos tempos.
O Kyrie ainda ecoava na Catedral quando me retirei. O lusco-fusco do fim de tarde caía sobre a Praça da Sé e eu me senti exausto ao olhar o ir e vir apressado dos passantes. Nada mais fazia sentido. Um gosto de morte escorreu-me no canto dos lábios. Enquanto descia a escadaria da Sé, Kuhn voltou-me à lembrança.
Tomei a direção à esquerda, dobrei a esquina e fui ao Sebo do Messias, em busca de um exemplar de A estrutura das revoluções científicas. Um novo paradigma, apenas um novo paradigma poderia recuperar o significado de estar vivo.
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Dea Conti é natural da cidade de Sorocaba, estado de São Paulo. Licenciada e mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, trabalhou 22 anos como professora de Filosofia. Escreve crônicas, contos e artigos analíticos, publicados em redes sociais e revistas virtuais.