É só buscar a mochila e tchau, não precisa vê-lo nunca mais. De repente, bloqueia das redes sociais, pode até sair das redes sociais, nunca mais botar uma porra de foto. Quem sabe pega um cinema depois? Melhor levar um xale, o frio que faz nesses cinemas é desgraçado. E se nem pegasse a mochila? Poderia ligar e dizer não vou mais. Ou mandar uma mensagem, Fabrício, pego minhas coisas outro dia, ok? Não, não, sem ok, chega dessa história de pedir permissão. Foi por isso que acabou, não foi? Não teria conseguido ir embora se a terapeuta não tivesse dito: será que você quer ficar? Será que algum dia você quis ficar, fez qualquer porra de coisa na vida porque quis? A mordida na amiga da escola. Terceira série, nove anos. Não era idade de morder. Letícia, o nome dela. Tinha uma trança preta que alcançava o fim das costas. Não sabe porque mordeu. Não tem a mais absoluta vaga ideia de porque mordeu. Sabe que quis. A única coisa que verdadeiramente quis. O resto quiseram por ela. Ela consentiu, porque consentimento é alguma coisa que nasce do coração ou da veia cava superior e está tão perto da garganta, que é fácil dizer sim. A vontade verdadeira, o desejo intransigente, a urgência, vem do baço. Nunca transou por vontade do baço, nunca, nunca. Sempre consentimento. Disse sim para a vontade que nasceu do baço do outro. Cria do seu próprio baço, só os dentes enterrados na bochecha da menina. Letícia, o nome dela.
Joga o celular na bolsa, desistindo da mensagem, com ou sem ok. Três estações de metrô e quatro quarteirões andados ofegantes e está em frente ao prédio. O porteiro, desatualizado da vida amorosa dos moradores, fala para ela entrar, sem anúncio. Se quisesse poderia dar para o porteiro agora. Ela queria? O porteiro com certeza daria consentimento. Fechava a porta da cabine, enrolava a saia na cintura, afastava a calcinha. Vem. O homem tinha o que, cinquenta, sessenta anos? Era casado, que ela sabia que a mulher dele fazia faxina no prédio, cabelo tingido de loiro. Fátima, o nome dela.
O porteiro disse sim e não foi para o sexo. Pode subir, ele avisou que quando você chegasse podia entrar.
Apertou o catorze. Por dois anos apertou o catorze toda quinta à noite, às vezes sexta, de vez em quando vinha na terça de tardezinha, depois do estágio. Nos últimos tempos vinha na quinta e só voltava para sua própria casa na segunda. Deixou escova de dentes, uma camisola de algodão, um alicate de unha, um punhado de elástico de cabelo, um vestido azul de botão na frente, um chinelo, duas calças de moletom, uma blusa de alça, uma camiseta com a cara da Nina Simone, um shampoo para cabelos secos, um creme depilatório, uma pinça, três calcinhas, um top de ginástica, um brinco de abalone em forma de gota, uma conta de celular, um pote de vitamina C e um batom cor da boca.
Fabrício com a porta já aberta, a mochila perto do pé. Nos dois anos em que ficou, aprendeu a leitura das vontades dele. O baço de Fabrício queria que ela pegasse as coisas e fosse embora. Só não deixou na portaria porque deve ter pensado na civilidade, as baboseiras do jovem-moderno lidando com o fim do relacionamento.
Disse não quer entrar, só pela certeza de que ela recusaria. Claro, entro sim, estava pensando em pegar um cinema, você tem o guia aí?
Ela já está no meio da sala, afofando a almofada para se sentar. Fabrício em pé, com as duas mãos no bolso da calça jeans, olha na direção aflita da porta por onde ela acabou de passar. Não entenda mal, Ana, mas não sei se a gente deveria conversar. A gente nem está conversando, Fabrício, a gente jamais conversou, eu nunca te falei as porras todas que se passavam no meu baço, nem transar com você eu queria muito, sabia? da primeira vez, na festa da Carol, eu não queria de jeito nenhum, você chegou e um cheiro de vodca, o Formiga tinha derrubado um copo na sua camisa, você cheirava a vodca e um hálito de doritos, tinha até farelo laranja na sua barba, era engraçado porque parecia aqueles piratas ruivos de desenho e você disse vem e eu fui, dei meu consentimento, mas não a minha vontade. Você nem perguntou se podia me virar de costas para terminar, me girou que nem essas bonecas de encher, nem perguntou se estava doendo. o corpo é meu, Fabrício, a única coisa que é minha neste mundo, a única, única, meu corpo inteiro, com meu baço, minha veia cava superior, meu coração e minha garganta. você perguntou se foi bom e eu disse ham ham e você não perguntou mais nada, porque nem queria saber se eu tinha gostado, só queria que eu dissesse que você foi incrível e você não foi. nunca foi. sabe que eu quase dei para o porteiro lá embaixo? agorinha mesmo, quase que eu dou pro seu Osvaldo dentro da cabine e deve ser melhor do que você, não deve ofegar igual cavalo, babando na minha orelha. eu tinha um nojo quando você babava, Fabrício, um nojo que de falar eu vomito. e isso de você só conseguir gozar comigo de costas? deve ser doença, querido, já foi em psicólogo, psiquiatra, tem que ver isso, não deixa de ver que pode ser sério, essa coisa de só gozar olhando pra nuca da mulher é que nem câncer, que quando a gente não faz nada vai alastrando e quando a pessoa vê, está tomada, não tem mais coração, baço, garganta, veia cava, é tudo o tumor, uma feridona que não cura nem com radiação. agora vem, meu anjo, vem que você vai gozar olhando bem na bola do meu olho. não se preocupe com a faca que eu nem vou fazer nada. e o que esta faca estava fazendo aqui em cima da mesinha? descascar laranja com uma faca dessa, Fabrício, que perigo, em tempo de cortar o dedo. fica tranquilo, só peguei porque você estava levantando. ir para onde, você está em casa, lembra? na sua casa, quem pode ir embora sou eu e é por isso que eu fui e daqui a pouco vou de novo, porque depois que você gozar olhando pra minha cara, não quero te ver nunca mais. está tudo bem, meu anjo, vou colocar a faca um pouco mais pra baixo, está longe do baço, o importante é o baço, eu te prometo, olha aqui pro meu olho, querido, juro que se eu enfiar a faca em você, se eu enterrar a porra desta faca na sua barriga, passo longe do baço, sei exatamente onde fica. sabe a costela, o lado direito? conta um palmo fechado e um dedo. aí, bem aí. mas não vai precisar, daqui a pouco vou embora, dou até uma bitoca no seu Osvaldo, às vezes até boto a língua, imagina, Fabrício, é capaz do cara não dormir, vai comer a mulher dele de cabelo oxigenado pensando em mim. Fátima, o nome dela. agora vamos, meu bem, vai tirando essa calça que não tenho a tarde inteira, ainda quero pegar a sessão das cinco e vinte, cinco e meia, ainda bem que peguei um xale, você não acha que esfriou? vou afastar a faca pra você tirar a calça, imagina como é ter uma faca atolada na barriga, nem consigo imaginar, Fabrício, a lâmina rompendo essa pele fina, não é doido pensar que uma pelinha dessas protege todas essas coisas importantes: intestino, estômago, rim, bexiga, uma furadinha e bum, estoura tudo. fica tranquilo, anjo, estou só falando, não vou fazer nada não, é só você gozar olhando pra minha cara. mas não baba muito, tá bom? te falei que tenho nojo? ah, é, falei. agora vai, que daqui a pouco dá quatro e meia. Hein, não, não, soltar a faca não dá, porque daí você foge, imagina, Fabrício, você correndo pelado no prédio, pedindo socorro pro seu Osvaldo? agora vai, acaba logo com isso. fica tranquilo que eu estou tomando pílula direitinho, sem perigo de bebê, se bem que imagina, Fabrício, um menininho meu e seu, quem sabe uma menina? queria que chamasse Clara, você gosta, meu anjo, hein, de Clara? vai, agora concentra, fica tranquilo que a faca está longe do baço, depois vou no cinema. aliás, você tem o guia?
_______________________
Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru -SP. É defensora pública e escritora. Seu primeiro livro, Enfim, imperatriz (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria Conto.