Eu me sentia bem quando Diego lambia a minha mão.
Não que sobrasse comida em casa, muito pelo contrário, de vez em quando, era raro, até faltava, mas, se isso acontecesse, nós dávamos um jeito. Na verdade, crescemos aprendendo a dar um jeito em tudo, a manobrar as vias em nossa direção, lá em casa, pau que nascia torto se endireitava nem que fosse à cacetada e os ventos eram sempre favoráveis, não importava pra que lado soprassem. Tanto assim era, que eu conseguia fazer sobrar toda vez um pouquitinho das refeições e escondia no bolso da saia pra alimentá-lo: fosse um naco de pão, um restinho de banana, mesmo um cadinho de carne, mas esta já me fazia falta porque era escassa; farinha pura, ele torcia o nariz, era meio fresco, pra falar a verdade, tamanhos eram os modos, vê, que ele só comia da minha mão. Pois então, depois de recolher os pratos, as bacias, as panelas e dar pra minha irmã mais nova lavar, depois do pai pitar e da mãe recolher as roupas do varal, antes de ir dormir, eu esgueirava o meu corpinho silencioso até o lado de fora da casa e ia até onde ele tivesse se escondido. No começo, eu tinha de procurá-lo, nem sempre ele estava no mesmo lugar, mas, em pouco tempo, ele acostumou suas expectativas ao nosso noturno encontro e já ficava me esperando escorado na mesma parede de trás, onde não havia janelas e os olhos não podiam nos encontrar.
Não era pra ninguém saber que eu dava comida pro Diego, ele mesmo percebia que eles não sabiam, entendia a clandestinidade do nosso acordo, era esperto. Quando apareceu primeira vez lá em casa, não acharam nem bom nem ruim, não dava pra alimentar mais uma boca, isso era sabido, mas gato não é animal que se basta?, não sustenta a sobrevivência com a própria caça?, à espreita de ratos e passarinhos tontos por aí vai sobrevivendo, podia ficar por ali, se quisesse, ganhar um afago vez ou outra das crianças, des que não desse trabalho; ele entendeu, foi entendendo com o tempo, foi ficando, enquanto tivesse sol, ele se enrodilhava debaixo da árvore ou em cima do teto, passava o dia dormindo dentro de si e assim que anoitecia, ele acordava, desperto, vivíssimo e dava início ao próprio cotidiano. Eu imaginava que Diego tivesse uma vida noturna agitadíssima, repleta de peripécias e ardis; algumas vezes, amanhecíamos a encontrar pelos cantos penas molhadas de sangue, restos de outros animaizinhos, evidências, não tão vivas, das emboscadas bem sucedidas, e pra mim estas eram provas de uma complexa personalidade que, após caçar ferozmente durante a madrugada, descansava o bucho cheinho baixo o mesmo sol do qual a gente se escondia. Eu era toda encantos por Diego. Nos finais de tarde, enquanto pilava o milho pra fazer farinha, parava observando o bichinho beber água do rio, achava que ele era sério porque quase nunca miava, era esperto aquele gato!, como era, ele entendia de verdade a paragem onde tinha resolvido estacionar os seus bigodes e era muito, muito bonito também.
Lá em casa não se desperdiçaria comida com gato, eu sabia, todo mundo sabia, bicho era de comer, não de dar comida, virado que alimenta gente não enche pança de bichano. Além disso, nunca vi, em todos os anos que sentei àquela mesa, sobrar sequer um grão de farinha sobre a toalha, panela se raspava pra aproveitar até o ferro e, se meu pai suspeitasse que algum de nós pensava em achar que a comida da mãe não estava do agrado, o cinto cantava direto no lombo, não existia isso de agrado em casa, e olha que não carecia ninguém dizer nada pra ele dar cabo no castigo, bastava o velho interceptar um olhar que ensaiasse desgosto pro babado do quiabo, ou uma boca amarrada que começasse a entortar mastigando o jiló, era suficiente pra ele fazer valer todo o esforço invisível por trás daqueles alimentos sobre a mesa, comida boa era a que alimentava, e ponto.
O mais velho era o único que se rebeliava: não aparecia pro jantar, de uma hora pra outra não queria mais saber de missa, andava procurando rabo de saia em tudo quanto era lugar, dizia que nossa cidade era pequena demais pra ele, e era mesmo. Mas também não tinha medo de dor, não, aceitava o próprio quinhão, rebento desgarrado que era, e recebia no couro até sangrar se fosse necessário, só para provar a própria lucidez, ele levava os corretivos com tanta consciência de si que era quase irônico, chegava a rir, baixinho, enquanto apanhava, porque sabia que, dentre nós, seria o primeiro a se emancipar da penitência que é ser filho, sabia que os tapas que recebia só vinham a coroar o seu destino e assim foi mesmo. Des que saiu de casa, tinha nem 16 anos, e foi trabalhar na cidade, deixou de precisar voltar.
Diego não demorou pra entender as minhas estratagemas e o tempo de consumá-las. Assim que o pai terminava de pitar e entrava pra dentro, assim que a mãe fechava as janelas, logo que começava tilintar a louça sendo guardada, era naquele então que eu saia pra fora, no mesmo rabo de movimento dessas outras ocorrências imperdoavelmente diárias. Esperava pra ver se ninguém além de mim se arriscaria um pouco no sereno pra ver as estrelas, quase nunca acontecia, aí então eu me agachava nos fundos da casa, catava a comida guardada no bolso, abria a mão e oferecia pra ele comer. Não era muito, nunca, mas ele gostava. E eu também. Não se podia dizer que o bichinho se saciasse, não, mas lambia os beiços com qualquer pedacinho de sobra que se acalentasse nas minhas mãozinhas, que deviam ser tão pequenas, eu não passava de menina ainda. Satisfeito, ele serpenteava o corpinho quente roçando nas minhas pernas, nos meus braços, eu ali agachada, e depois deitava do meu lado ronronando ligeirinho até eu ter de entrar de volta, eu morria de ternurinhas, gostava demais de Diego. Era importante que eu voltasse antes de alguém pensar em me chamar. A voz da mãe rompendo a membrana da noite pra brandir o meu nome causava irritação na casa. Silêncio era coisa importante pra gente: não se devia chorar quando apanhasse, ou resmungar enquanto trabalhasse, conversar durante as refeições, nem sequer pensar alto, ou alguém ouviria, com certeza, a mudez soçobrava.
Diego tinha esse nome apenas pra mim, não sei bem se dá pra dizer que é nome um chamamento que só eu mesmo usava. Mas pra mim eu sabia, era Diego quem ele era. Nome é coisa que se descobre, não que se dá, lá de onde eu venho, e tinha de ser assim com ele também. A pessoa não chamava nada antes de nascer, era preciso esperar algumas semanas, ver se ia vingar o bebê, pra só depois receber batismo. Eram tantos os que não vingavam que não valia a pena desperdiçar nome com quem não iria vir a existir, além disso, a gente alcunhava conforme a cara da criança, o rosto é que chamava pra si a sua própria denominação, afinal, não se podia chamar de Conceição quem tivesse cara de Maria, nem de Pedro quem parecesse João, de modo que era mesmo necessário deixar amadurecer um pouco o sujeitinho pra saber que nome ia brotar daquele rosto. Com ele também foi assim, um dia percebi que o bichano tinha os olhos amarelos como os do Diego, meu colega de classe, que era lindo, asseado, muito limpinho, uma das única crianças da escola que tinha um sapato do número correto no pé – nem grande demais, se comprava assim pra durar mais tempo, nem pequeno demais, quando tinha passado a hora de arranjar um novo – ele também não dividia as roupas com ninguém, o que dava pra ver pela juventude do tecido que era muito bem passado e engomado antes de entrar no corpo; fora o cabelo, o cabelo era a melhor parte do menino Diego, o cabelo era amarelinho quase feito um ovo, ninguém tinha a cabeça tão amarela quanto ele, ninguém!; ele também estampava no rosto os traços mais puros que eu já tinha visto, eram tão assertivos, tão bem delineados, Diego não era feito os outros, feito a gente, misturado, bagunçado, indefinido, na família da gente cada filho saía com uma cara, uns mais clarinhos que os outros, os outros mais pretinhos que os uns, feição de índio, olhinho puxadinho, cabelo sarará, não, ele vinha de uma família de pessoas parecidas consigo mesmas, toda igualzinha, perfeitinha, bonita e idêntica, era uma gente fiel a si, pura. Eu admirava demais a sua loirice, sua branquitude, seus gestos, sua lancheirinha, seus olhos, sua pureza. O único outro loirinho que eu conhecia além de Diego era Diego, de modo que o bichano ariano não podia ter outro nome, não.
Tudo vinha sendo muito bem conforme o planejado, eu dava o de comer pra ele, sentia o prazer da sua linguinha nas minhas mãos, dispensava um carinho na sua espinha, ele passeava entre as minhas pernas, um amor furtivo como o que há de melhor na vida. O mais curioso, eu achava, era que língua de gato é cheia de espinhozinhos, não é macia como a nossa, e enquanto ele comia da minha mão, eu sentia o molhado da boca dele, o áspero da língua, umas coceguinhas do roçar do bigode, um conjunto de sensações tão únicas e prazerosas na minha vida miúda que aquele encontro acabou se tornando o melhor momento no correr do dia todinho, em especial quando ele comia bem na palma da minha mão, onde era ainda mais agradável de sentir essas satisfações. Depois desse momento que era tão rápido e duradouro, eu lavava a mão no rio e entrava pra dormir, sem que ninguém me visse ou escutasse. Foi assim todos os dias, durante alguns meses, talvez anos, até que, uma vez, minha mãe botou a cabeça pela janela e me mandou pra dentro no exato momento em que eu estava a caminho do rio, antes que desse tempo de eu lavar a mão, tudo o que ela disse foi um “já” bem baixinho que era pra o pai não escutar. O medo de ser descoberto o meu felino delito era tanto que, antes que eu me desse conta, já tinha aprumado meu corpo debaixo dos lençóis sem lavar a mão. E agora? De um lado uma a mais velha, do outro a mais nova, logo adiante mais dois irmãos, pai e mãe no quarto colado ao nosso, a porta escancarada e o silêncio imperativo. Eu não podia levantar, ir até a pia, fazer barulho, o banheiro era no meio do mato, o tanque tava pra fora, eu não sabia como proceder com aquela mão toda molhada e grudenta, envolvida numa mistura do óleo da comida com baba do gato e ainda meu suor frio. Aproximei-a do rosto e não fedia, pelo menos isso, se eu quisesse, podia limpar no lençol, mas gordura mancha que não sai nunca mais e com certeza no dia seguinte a mãe ia ver, não, eu não podia fazer isso, não podia estragar as roupas de cama que eu mesma tinha ajudado a costurar com a máquina da vó, não podia manchar a roupa de dormir que eu tinha herdado da mais velha e cuidava tão bem pra passar pra frente, o que eu ia fazer então?, ah, meu Deus, dormir com a mão pra cima?, limpar a mão no cabelo?, o braço já estava doendo de tanto segurar no alto, isso não ia dar certo, meu Deus, de um jeito ou de outro eu ia acabar apanhando, não queria, não queria mesmo, as marcas que ficavam nas costas eram tão feias, o couro todo ardido, eu não podia nem sequer chorar, o que eu ia fazer?. E foi aproveitando-se desse emaranhado torvelinho de medos, feito tivesse vida própria e soubesse muito bem o que fazer sozinha, como se eu não pudesse mandar nem sequer nos meus próprios movimentos, nessa brecha confusa que os meus pensamentos abriram a minha mão se enfiou entre as minhas pernas e começou a fazer os mesmos carinhos em mim que eu fazia no Diego, assim sem mais nem menos, feito a cabeça do bichano estivesse no meio de mim. E eu não conseguia parar! Mesmo com medo, cheia de medo de alguém descobrir, eu não queria parar. Quando dei por mim, o óleo da comida e a baba de Diego se mesclaram a uma saliva que era minha, saía de mim e eu nem sabia que existia. Claro que eu não entendia o que estava acontecendo, mas era bom. Era ainda melhor do que sentir as ternurinhas do bichano, mais gostoso que a língua dele roçando os meus dedos, do que lamber os beiços depois de comer frango assado, do que comer de colher direto da panela, bom, bom demais.
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Natália Zuccala é escritora, dramaturga e professora. Publicou seu primeiro livro, “Todo mundo quer ver o morto”, em 2017, pela editora Patuá e integra o grupo “Escritorxs de quinta”. Teve algumas de suas peças encenadas pelo coletivo “Antessala”, do qual fez parte de 2013 a 2017. Formou-se no curso de Letras na Universidade de São Paulo e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura na Escola da Vila.