Ádvena* – Vera Saad

|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Vera Saad

Não sei bem por quê, mas não conseguia pensar em nada além daquela frase sobre Robert Schumann, dita por Clara ao se referir à loucura. Angel estava à minha frente. Reclamava da Lei nº 13.541, que entrava em vigor. Recusava-se a apagar o cigarro. Um sopro longo. O ar descarnado daquelas palavras que não me saíam da cabeça. “As vozes dos anjos se transformaram em demônios, sob uma música horrível.” Era o que não me saía da cabeça. A observação de Clara Schumann é conhecida, a loucura que assombrou o marido por tanto tempo também. Via-a em Angel, tanto a observação quanto a loucura. Imaginei seu reflexo no Rio Reno. Caronte, o único barqueiro. Quase disse em voz alta, mas entendi que o que dissesse não apagaria o cigarro ou a lei, tampouco aquela tarde em que nos encontramos pela última vez. Loucura seria a minha interromper Angel com palavras sobre suicídio. Não havia lógica em justificar um encontro marcado daquela forma com um comentário sobre Schumann. Tossi no lugar. Notei o cinza recortado pelos prédios do lado de fora do café onde estávamos, em frente ao Estadão.

Nosso último encontro esquecido em uma tarde cinza, em um café em frente ao Estadão. Angel com seu novo namorado, eu com Cohen.

Não fazia ideia de que aquela era a última vez que a via, talvez por isso não me preocupei em memorizar suas palavras, a maneira como soprava a fumaça enquanto reclamava, o coque que fazia com o próprio cabelo e o cigarro entre os dedos, muito próximo de um incêndio.

Quase nada guardei daquela tarde, exceto o silêncio de Cohen e a frase que temperava a angústia de Angel, engasgada nas repetitivas reclamações e coques improvisados, sempre prestes a desabar. Muito provável que, além do coque, eu estivesse perto de desmoronar. A lembrança de titia sumia e retornava mais forte, mais violenta.

Tentava redesenhar mentalmente seu rosto, mas alcançava no lugar uma figura sem contorno. A certa altura, corri para o banheiro e vomitei o café e a tristeza de Angel, no esforço inútil de esquecer que fora minha tia quem me apresentara sua então aluna de piano.

De volta à mesa, retomei a reclamação sobre a Lei nº 13.541. Por um bom tempo, nos concentramos todos nas contrariedades que o cigarro já apagado causava. Decerto eu buscasse em desespero alguma outra conversa ou frases que me desviassem do real motivo pelo qual estávamos naquele café. Decerto também eu parecesse ouvir outras vozes da última vez que vi Angel.

FILIPA MARIA

Havia quase meia hora que Filipa Maria continuava de pé agarrada a um saco plástico, encarando uma jovem que subia e descia um peso de 5 quilos em frente ao espelho. Filipa olhava para a moça, que, por sua vez, examinava a própria imagem refletida. Fazia uma careta e emitia um ruído quando levantava o peso, sob o olhar da outra e dela refletidos no espelho. Às vezes, contava baixinho até trinta, bebia da garrafa transparente um gole d’água, àquela altura já saliva e suor, e voltava à careta e desconforto causados pelo peso e vigilância daquela que ainda estava imobilizada com o saco plástico junto ao corpo.

— Você quer usar o peso? — por fim soltou, além do ruído.

Filipa não disse nada. Sacudiu a mão em sinal para que continuasse, que estava bem, parada por quase meia hora, sem mexer os músculos da face.  Em sinal de que qualquer esforço físico atrofiava o cérebro, ali, em uma academia de ginástica. Seu braço mole movimentava-se inteiro com a mão, mas estava bem. Agarrada ao saco, arriscou alguns passos em direção à moça e aos pesos de 5 quilos.

— Gosta de música clássica? — sua voz era fraca, mantinha o corpo firme para que saísse algum som. A música alta da academia abafava o que tentava dizer.

— Não entendi.

— Gosta de música clássica?

A moça enxugou uma gota de suor equilibrada na ponta do nariz. Algo naquela mulher a atraía. Notou que no saco havia papéis com muitas listas de nomes e títulos em alemão.

— O que tem aí nesse saco?

Filipa encurvou-se sobre o saco de onde catou uma folha com uma extensa lista.

— Gosta de música clássica? Conhece Mozart?

Com o rosto menos melado, a outra bufou. Não era tão ignorante quanto impunha sua postura ante um espelho, subindo e descendo um peso. Gostava de música clássica. Na infância, aprendera com o pai a gostar de Max Bruch. Aos sábados, seu pai sentava-se em uma poltrona na sala próxima à janela, enquanto ouvia o Concerto para Violino em Sol Menor. Não raro chorava. Ela nunca soube por que chorava, mas, desde então, passara a achar o concerto triste. Bem verdade, passara a achar música clássica triste ao ver o pai, nas manhãs de sábado, de olhos e mãos fechados, prontos a agarrar alguma beleza daqueles dias, deixando que uma ou outra lágrima lhe escapasse. Aquilo era beleza para aquela menina, o oposto de felicidade.

— Conheço Max Bruch, serve? — foi o que conseguiu dizer.

— Max Bruch? Então está em um estágio mais avançado — voltou o papel ao saco e puxou outro com Max Bruch entre os nomes da lista. O indicador grosso, com a unha vermelha descascada, apontava para os nomes. — Veja. Os contemporâneos de Max Bruch: Brahms e Bruckner. Anton Bruckner nasceu catorze anos antes de Bruch. A Sinfonia nº 7 é a mais famosa, mas eu prefiro seu Réquiem em Ré Menor, um dos mais bonitos. Claro, conhece os réquiens de Mozart.

— Sim, conheço.

— E de Verdi?

— Você é musicista? — ela não quis prolongar a conversa. Tinha outras séries a cumprir, além da esteira, onde suaria mais e por lá largaria o corpo pesado. A curiosidade sobre aquela mulher, no entanto, aumentava.

— Não. Sou diletante. — Filipa tinha horror à palavra diletante, o que não a impedia de dizer lenta “diletante”, como para justificar-se em uma sala de musculação, alerta à educação daqueles que olhavam todos para a mesma direção: o espelho. Estendeu o braço, as unhas descascadas à vista. — Meu nome é Filipa Maria, prazer.

— Prazer, eu sou Angel. Você me desculpe, mas tenho que voltar aos exercícios.

— Tome. Pra você — entregou-lhe o papel com a lista de compositores e composições da segunda metade do século 19. — Não se esqueça de pesquisar em casa.

— Pode deixar, obrigada — dobrou a lista e correu para a esteira. Queria terminar aquele dia.

Filipa Maria também queria encerrar logo aquela tarde, esperançosa de que pelo menos alguém daquele lugar passasse a compreender um pouco música clássica. Não da maneira como ela apreendia, certamente. O corpo seria outro, sem pele, uma mancha permanente na partitura, mas, se pelo menos se rendesse a uma frase de Beethoven, já seria um começo. Para Filipa, a educação somente teria efeito se iniciada pelos sentidos.

Na saída, reencontrou aquela que gostava de Max Bruch. Cabelos curtos bem pretos, olhos puxados. Fumava em frente à porta.

— Depois de se exercitar, você fuma?

Ela deu de ombros.

— Quer sair? Beber alguma coisa? — teceu, enfim, o convite para uma amizade crescente entre uma professora de piano e sua futura aluna. Convite por meio do qual minha tia Filipa Maria conheceria Angel mais até do que eu.

Margearam a Avenida Angélica. Algumas árvores no caminho. Cruzaram a Avenida São João. Encontraram, finalmente, a padaria a que Angel sempre ia após o corpo correr parado, meio quilo a menos de suor. O lugar recendia a pão fresco. Com comanda na mão, sentaram-se à mesa reservada para fumantes. Pediram cerveja, a retornarem aos dois quilos a mais cada uma.

Garrafa de 600 ml, dois copos cheios e um brinde. Angel catou na bolsa maço e isqueiro e acendeu um cigarro.

— Sempre te saco na academia. Todo mundo te chama de esquisita. Fica lá, rodeando os outros. Quer saber da música clássica — soprou a fumaça. — Até já foram reclamar na recepção. Eu não me incomodo, acho graça.

Minha tia quis falar da música, da desconexão entre os anjos e demônios de Schumann e da vulgaridade de quase todo mundo, mas tomou outro gole de cerveja. Talvez porque estivesse encantada pelo paradoxo que era Angel, alguém que fumava e bebia com a mesma intensidade que dedicava a pesos, anilhas e esteiras.

Conversaram noite adentro. Descobriram mais semelhanças que estranhezas. Nenhuma das duas acreditava na felicidade. Ambas eram estrangeiras na própria família. Angel, porque era filha de um búlgaro com uma manauara. Titia, porque sempre foi diferente. Contou para a nova amiga que também dava aulas de piano, algo em que a outra não acreditou muito. As unhas vermelhas descascadas à mostra, enquanto Angel acendia outro cigarro.

— Não tem mãos de pianista.

— Não tenho mãos de madame.

As duas riram.

Titia gostava de palavras e ensinou uma nova a Angel: “ádvena”. A outra agarrou fascinada o novo verbete, que repetiu para si por quase todo o tempo em que permaneceu ali com a cerveja, os cigarros e as unhas vermelhas descascadas de Filipa Maria. Soltava com a fumaça cada sílaba, sem pressa, quase uma oração com as letras de uma só palavra: ádvena.

_______________________
Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), Vera Saad é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.

*Primeiro capítulo do romance Dança Sueca (Patuá, 2019)