|ESCRITORXS DE QUINTA
Por Natália Zuccala
Ela olhava para mim com a gentileza própria de quem vive sabendo o que faz e sem entender o que poderia haver de tão incompreensível na morte, a qual eu tinha feito sentar conosco à mesa como quem traz visita inesperada mas acaba muito bem recebida, obrigada, (a mãe é a melhor anfitriã de que se tem notícia na nossa família!). Eu devolvia sua atenção com ainda mais ignorância e medo do que antes e me perguntava em que desvio geracional se escondera a sua capacidade de entendimento e aceitação para que eu resultasse assim tão agoniada, apesar dela. Para domesticar a minha angústia, que marchava num vai-e-vem espasmódico sobre o macarrão feito um anãozinho raivoso, fazendo respingar molho de tomate por sobre toda toalha mantida até então brancamente imaculada, minha mãe aplicou com cuidado e graça sua parábola: “Eu tinha cinco anos, da primeira vez, a Conceição sete. O vô tava há algum tempo, a gente via, enfermo na cama, impossibilitado da vida, e a mãe fazia questão de nos avisar sobre os porvires fatais da conjuntura; além deste tudo, vivíamos também em lar religioso, coisa que não impus a vocês – nem sei se devia – mas que trazia lá pra dentro os assuntos do tempo e os anais do fim. Seja como fosse, houve então o fatídico em que o vô cumpriu a previsão e se foi de nossas lidas. A gente, na expectativa do que aconteceria como resultado daquele evento até então inédito, sem compreender, como você está agora, o que havia do outro lado da morte, sentou a trabalhar na casa pra esperar as coordenadas dos adultos. Qual não foi, minha filha, a nossa surpresa quando o pai veio com todos aqueles vidrinhos pra dar pra gente? Eram tantos, que o vô estava muito doente, e eram tão lindos, uns vidrinhos grossos, de cor escura, com tampa de metal rosqueada, nunca vou me esquecer, todos iguaizinhos, do mesmo tamanho e largura, e eram só nossos, das crianças menores, de proveito próprio, presente, como se diz; pra completar, depois disso, o que já era o suficiente pra deixar a gente inflamada por bem uma semana, pra completar, ainda eles mataram uma porção de frangos, mas muitos, chamaram um montão de gente, muitos mesmo – veio parente de outras cidades, gente da capital, ilustres desconhecidos – também nos lustraram todinhas, botaram roupa de festa, as mais velhas pentearam nossos cabelos, e as tias prepararam panelas e baldes de comida, houve recreação, pela primeira vez.” Olhei minha angústia, ele dormia babando no macarrão, olhei minha mãe, ela re-ria com a barriga, antegozava: “Tanto ficamos satisfeitas pelos anos seguintes que quando o tio João ficou de cama eu corri perguntar pra Ceição: ‘Será que ele vai morrer também?’ Agora, coisa que eu nunca vou me esquecer porque fez muito mal pra todos nós, essa sim, pra toda a família, foi uma fadada festa junina. O povo de São Paulo disse que vinha, iam organizar o evento lá no nosso interior. A gente era pra cortar madeira, que ia ter fogueira, pra colher o milho, ia ter doce, e socar farinha, também o salgado; e nós fizemos tudo isso. Eu e sua tia botamos empenho em ajudar a realizar algo parecido com o funeral do vô; vidrinhos, frango, gente de fora. Mas aí chegou o dia e ninguém veio. Simples assim, ninguém veio, você acredita? Eu te digo uma coisa, minha filha, essa sim de importância: nunca prometa a uma criança coisa que você não vai dar conta de fazer. Nunca! Preocupe-se, em sua vida, com isso e com mais nada.”
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Natália Zuccala é escritora, dramaturga e professora. Publicou seu primeiro livro, “Todo mundo quer ver o morto”, em 2017, pela editora Patuá e integra o grupo “Escritorxs de quinta”. Teve algumas de suas peças encenadas pelo coletivo “Antessala”, do qual fez parte de 2013 a 2017. Formou-se no curso de Letras na Universidade de São Paulo e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura na Escola da Vila.