Coluna | Escritorxs de Quinta
Os primeiros livros que li na vida foram da Zíbia Gasparetto, quando tinha cinco anos de idade. Ia com a minha tia a um centro espírita no Rio de Janeiro e, para que não ficasse três horas sem ter o que fazer, ela me punha às mãos romances cheios de histórias de amor e espíritos obsessores. Eu amava e devorava as obras. Eram muito parecidos esses livros: geralmente alguém tentava separar um casal ou fazer mal a alguém e, numa determinada reencarnação (em que o livro se passava), vinha para resolver as situações do passado.
A linguagem servia para contar a história. Era quase uma linguagem invisível, discreta, que se colocava apenas o suficiente para conduzir o leitor pelo enredo, sem atrapalhá-lo em sua catarse, sem roubar a atenção para si. Livros assim, que não quebram a “quarta parede” e fazem o leitor mergulhar são, inclusive, muito valorizados pelo público, pois oferecem uma possibilidade cênico-psíquica para se viver determinadas emoções. A linguagem corrente, mais cotidiana, sem arestas estilísticas ou arroubos poéticos pronunciados, dá a esses livros um tom próximo de quem lê, sobretudo se a narrativa estiver em primeira pessoa.
Há quem torça o nariz para esse tipo de livro, por a linguagem ser mais comum. Elena Ferrante, por exemplo, que trabalha com uma linguagem simples, colada ao cotidiano, tem como trunfo usar essa linguagem para uma construção de personagens refinadas, em que as ambiguidades de Lila e Lenu se mostram em estruturas sintáticas simples, com frases que qualquer um poderia dizer, pensar ou mesmo escrever. Separadamente. Agora, vá colocar uma atrás da outra e fazer dessas frases veículos para medos, anseios e rivalidades… São outros quinhentos. Vá transformar esse caudal de frases simples num ethos complexo, vibrante…
O talento de Ferrante não está em cada frase, mas no que juntas elas fazem. São frases-ponte para adentrarmos em Lila e Lenu, são caminhos para aquele espaço cênico-psíquico-catártico de que falei anteriormente. Isso é bastante difícil de fazer. Quase tanto, eu diria, quanto conseguir um texto com singularidade de linguagem. Só não equiparo os dois por que surgem mais autores no primeiro do que no segundo grupo (e porque a singularidade de linguagem, pela minha experiência, exige um “salto quântico” mais raramente visto).
A literatura contemporânea brasileira, por exemplo, é formada predominantemente por textos mais correntes, no entanto, preciso dizer que a linguagem simples também não é um trunfo em si: ela não leva automaticamente a uma boa construção de personagem. Assim como não basta a singularidade de linguagem para um livro ficar de pé. É a conjunção de vários elementos que torna um livro especial (para quem?).
Particularmente, gosto de livros que se arriscam nos limites com os quais o autor se propôs a trabalhar – e isso pode acontecer (ou não) tanto num livro com linguagem corrente quanto num livro que busca a singularidade da linguagem. A literatura não se resume ao estilo escolhido pelo autor. Exemplo: É um livro em primeira pessoa, com viés memorialista e linguagem corrente? Então, o que o jeito de falar do personagem revela dele (além do que ele conta)? O olhar dele sobre os outros personagens aponta para quem ele é? Ou é um olhar distanciado, que faz mais as vezes de uma terceira pessoa onisciente do que de uma primeira (vício comum em textos de iniciantes)? Como trabalha a memória dele? É linear, dá saltos? Aponta para falhas? O personagem entra em contradição quando fala de si, quando fala dos outros (infelizmente, isso é riquíssimo e pouco explorado)? É possível entender perfeitamente quem esse personagem é ou ele escapa ao leitor de alguma forma? Sobre as experiências psíquicas do personagem: há luz e sombra? Elas se misturam?
Outros parâmetros de análise são necessários quando o livro trabalha com linguagem singular. De fato há uma métrica própria e proposições próprias dentro das estruturas sintáticas ou o livro apenas evoca métricas e estruturas do cânone sem adicionar algo singular a elas? (o que mais pego em leitura crítica é texto bem escrito, que conversa com determinada tradição, mas que não acrescenta a ela). Chamo a atenção também para a diferença entre singularidade e sonoridade: um texto pode ser sonoro sem ser singular e singular sem ser sonoro. E ele também pode ser sonoro e singular. No entanto, é bom fazer essa distinção, pois o ritmo (por si só) não garante singularidade.
Uma linguagem singular, na minha opinião, é aquela que – pela métrica e pela organização sintática – coloca algumas palavras em contextos, sentidos e representações simbólicas que causam sensações diferentes no leitor das que causariam normalmente. Pra mim, a singularidade da linguagem se dá quando a palavra é trabalhada na sua dimensão transcendente e não apenas na imanente. É quando a palavra vai além de sua funcionalidade literal e atinge espaços, inclusive, anteriores à aquisição da linguagem. É “Atravessar o que nos nega, chegar ao sim. E é assim que tu verás um S nestes dias cegos”, de Vicente Franz Cecim em Viagem a Andara. Que “S” é esse? É letra, imagem, representação de sim, serpente? É uma abertura. Cecim, aliás, é exemplo de autor singular que trabalha com texto sincopado.
É possível chegar à singularidade do texto pelo domínio técnico. A técnica, aliás, não é inimiga da alma do texto – pelo contrário. A técnica é a organização do texto, portanto, todo texto tem técnica. Nem sempre o autor tem domínio sobre o que escreve e qual técnica utilizou, mas há sempre técnica. Onde há palavra organizada, uma atrás da outra, há técnica. A consciência das possibilidades técnicas apenas amplia a movimentação do autor. É como se ele tivesse acesso a mais materiais para construir um prédio, por exemplo. Há gente que constrói uma obra-prima com poucos tijolos, há quem os construa com muitos. Há quem saiba de onde vieram os tijolos e há quem ignore essa informação. Sem tijolos, no entanto, sem chance. Em grandes cenas da literatura, como a morte da Baleia, em Vidas Secas, por exemplo, é possível ver a repetição (gordos, enormes) como recurso de acesso à alma do texto (ou o recurso seria a própria alma do texto? é possível mesmo fazer essa distinção?) O que vem primeiro: a técnica ou a alma? Acho essa discussão ultrapassada.
Falo disso porque, de vez em quando, há embate entre os autores que escrevem em linguagem mais corrente e os que buscam uma linguagem mais marcada. Um dos argumentos é esse: o grupo da linguagem corrente diz que a turma dos experimentalistas está tão preocupada com o estilo que falta alma ao texto. Os experimentalistas, por sua vez, dizem que o primeiro grupo patina na mesmice e, assim, vão se estabelecendo preconceitos que não fazem sentido. É como querer colocar para competir atletas de categorias diferentes dentro do mesmo esporte. Na minha opinião, não há escolha melhor que a outra, pois, dentro dessas escolhas, temos livros interessantes e desinteressantes, que vão fundo ou ficam no raso. Que cumprem e não cumprem com o que se propõem, que não se arriscam ou se arriscam dentro de suas propostas. Livros que talvez sejam bons ou ruins (mas de novo: pra quem?) 🙂
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Anita Deak é escritora, editora de livros e fundadora do Coletivo Escritorxs de Quinta. Nasceu em Belo Horizonte. Seu romance de estreia, Mate-me quando quiser (2014), foi finalista do Prêmio SESC de Literatura. Atualmente, escreve No fundo do oceano os animais invisíveis. Você pode conferir o que ela fala sobre Literatura nos stories do Instagram